A gratidão do leão
Como meus amigos e amigas já sabem, este ano, sufocado por meus deveres profissionais, estou lendo mais do que escrevendo.
A leitura está me servindo para me distrair do intenso trabalho e fica mais fácil, no pouco tempo livre, ler do que escrever.
Não sei se já notaram que a coisa mais universal que existe é a grande diversidade do ser humano. Essa a nossa dificuldade, porque não é fácil tolerar o diferente. O grande escritor de um só livro (Ensaios), o francês Montaigne, nos alertava para essa diversidade, lá pelo ano de 1580 . E acrescentava algo que todos nós estamos sentindo em pleno e “moderno” século 21. Dizia ele, no século 16, quando o Brasil foi descoberto: “ Quem, ante o espetáculo de nossas guerras civis, não exclama que a máquina do universo saiu de suas engrenagens e o juízo final nos agarra pelos cabelos sem parar e pensar que piores coisas aconteceram sem deixar de existir as mil partes restantes?”
E lamentavelmente essas piores coisas continuam acontecendo no mundo e debaixo de nossos narizes.
Francamente, não quero falar do ser humano, pois basta ver a discórdia nos sites de relacionamentos sociais, onde cada um tem uma opinião e ninguém se entende. A paixão predomina e não se chega a um consenso.
Daí o título da minha crônica preferir falar do animal dito selvagem.
É uma história verdadeira que encontrei no Montaigne.
É sobre a gratidão. Um dia, na antiga Roma, no Coliseu, o povo se acotovelava para assistir a mais um espetáculo de leões de grande tamanho e ferocidade estraçalhando e matando escravos. Um dos escravos chamava-se Ândrocles, que passarei a chamá-lo de Jurandir (que não é o Juca Chaves, evidentemente). Pois bem: um dos leões que foi solto para matar o escravo, deteve-se, espantado, ao vê-lo. Tendo se aproximado do escravo, começou a abanar a cauda, como um cão amestrado e beijou as pernas e as mãos do pobre homem, morto de medo. E o Jurandir acabou reconhecendo o leão, e se puseram a abraçar-se, com o povo dando gritos de alegria.
O Imperador mandou chamar o escravo para explicar o acontecido. E ouviu a seguinte história: o escravo havia fugido do seu amo, ainda na África. Refugiou-se na mata, onde encontrou uma caverna, que serviu de esconderijo. À noite, apareceu um leão urrando de dor. Estava com a pata ensanguentada e com uma lasca de madeira ali cravada. O Leão dava a pata para o escravo, como que suplicando ajuda. E o escravo tirou a madeira e cuidou do ferimento durante uma semana. Um belo dia, resolveu fugir da caverna e não viu mais o leão. O Jurandir foi logo depois preso por soldados do seu dono e entregue aos romanos para ser devorado pelos leões. Ao que parece, nessa mesma época, o leão também deve ter sido aprisionado. E o animal, reconhecendo o Jurandir, demonstrou sua gratidão. O escravo conquistou sua liberdade e ganhou de presente o leão. Os dois eram vistos passeando pela cidade.
Há cerca de 15 anos tive em casa 24 gatos. Numa das ninhadas, nasceu a gatinha Flor. Esta gatinha tomou-se de amores por mim, que me obrigava a fugir dela. Quando me distraía, ela pulava em minhas costas, agarrando-me com força. Para onde eu ia, ela corria alucinada para mim. Um dia, tive que correr e trancar-me no quarto, para fugir da perseguição implacável da Flor. Ficou batendo na porta, até que alguém da casa a tirasse do meu encalço.
Temos, sem dúvida, como queria Montaigne, um sentimento de comunidade essencial que entrelaça e une todos os seres vivos, plantas ou animais.
Nesta época “cabeluda”, enquanto as coisas não melhoram, farei como Ítalo Calvino: não esquecerei de dar voz aos animais, às plantas, às pedras e às montanhas...