Castigada por sua ilusão

Esta é sobre uma mulher, beirando os sessenta anos de idade. Todos os dias caminha com o marido na tentativa de acompanhá-lo nas andadas do dia-a-dia ou, talvez, seja apenas a pedido do médico, pois suas pernas estão mais lentas e pesadas mais do que o normal. Hoje seu marido tinha uma consulta marcada no dentista que não era muito longe de casa, nem da praça onde costumavam caminhar. Então decidiram ir antes de se exercitarem.

A mulher estava sempre correndo atrás de suas belezas externas para agradar o marido, este que sem muito esforço, agradava-a. Antes de saírem a mulher preparou um delicioso café preto, daqueles bem amargos, do jeitinho que seu marido gosta, junto ao pão feito por ela, mesmo com dores e dificuldades de mexer as mãos. Não havia sinal, um balbucio sequer da parte dele, de carinho ou simplesmente um agradecimento do esforço da mulher.

Enquanto o homem, já pronto para sair, deliciava-se com a culinária da esposa, esta terminava de calçar seu tênis de corrida, com os obstáculos de sua dor, mas para não demonstrar sua fragilidade, chorava por dentro. Ao terminar de calçá-los, levantou, e suas pernas estavam, levemente, trêmulas. Andou até a cozinha, onde lavou a louça do café que, pela demora para se vestir, não pôde tomar também. Seu marido, sem falar nada, abriu a porta e a esperou do lado de fora, como se estivesse apressando-a sem palavras.

A mulher trancou a porta e o portão. Os dois saíram lado a lado, porém no meio do caminho foram se distanciando. Como não davam mais as mãos, o homem não percebeu a lentidão de sua mulher e a deixou para trás.

De cabelos brancos presos em um coque caído, óculos dourados, daqueles típicos de vovós, camiseta larga branca e uma calça preta de ginástica, andava com esforço na tentativa de alcançar os firmes passos de seu marido, que aparenta ter aproximadamente a mesma idade. Ela estava com muita dificuldade de andar na calçada torta, "comum" do bairro. E ainda quase caiu ao subir uma pequena rampa de mais ou menos quatro palmos para cima. Seus pés, por pouco não subiam, não aguentavam o peso, não de seu corpo, mas de sua idade.

Enquanto o marido estava chegando, já a dez passos a frente, ela, com relutância, cabisbaixa, intimamente envergonhada, lutava para atingir-lhe. Era nitidamente possível ver em seus gestos, velozes para ela e lentos para quem a observava, os sentimentos de medo e a voracidade para que aquele momento terminasse logo e pudesse voltar para casa, mesmo que lá não houvesse carinho algum.

Antes de entrar no consultório, onde seu marido já havia entrado, deixando-a para trás, subiu um degrau, o último, com o suor velho que ainda restava dos goles de água tomados junto com seus remédios da manhã. Parou, então, na frente da porta, deu um suspiro ofegante, e sem olhar para mais nada, focada em continuar sua trajetória militarística e ilusória. Enfim, entrou para acompanhar seu amor não mais recíproco. Não mais sustentado pelos dois. Um amor feito somente de esperanças escarradas instaladas em sua mente castigada.

Rayssa Êvang
Enviado por Rayssa Êvang em 15/04/2015
Reeditado em 15/04/2015
Código do texto: T5207369
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