REZAR.

Ontem ouvi o choro vivo de um amigo que perdeu a mulher faz mês e meio. Viviam uma unidade maior que a unidade, um nó que só se desataria pelos dois para se desfazer, um laço definitivo de emoções vividas porque apertava os dois de forma envolvente, em unidade especial dentro da unidade maior. E desse todo desligou-se em corpo uma parte. A morte foi mais forte. O que ganha divisão na natureza aliada à afetividade extrema perde a força. A divisão induz fracionamento que alcança o desfazimento tratando-se da soberania imperiosa dos sentimentos, o amor.

Não tinham filhos, o que não repara nem minimamente a dor da perda se existissem, mas seria mais um ombro para dividir a dor moral, que também amigos emprestam, para sustentar a angústia mesclada na aflição, e somente, ou possível também, aumentar essa dor se filhos existissem, a dor de uma lembrança multiplicada de vivências vividas somadas, compartilhadas. Viver, eterna interrogação.

Falávamos eu e ele ao telefone, e minha mulher intercedeu vendo meus sinais e entrou na extensão e sedimentou com sua argúcia, sensibilidade e inteligência, tentando consolar o amigo após ter dito que passou mal duas vezes, apagou, sendo socorrido por amigos em lugar mais distante, onde tinham uma casa, digamos, para onde fugiu das lembranças mais repetidas, sem sucesso, das memórias mais próximas de seu lar principal, dizendo o seguinte:

Disse minha mulher ao nosso amigo comum, por qual razão nos faz a vida criar laços tão fortes, cimentados pelo tempo dilargado no convívio de alimento de especial afeição, e cruelmente ser rompido?

Me jogou repentinamente em intenso redemoinho de dúvidas pensadas resolvidas no meu interior. Uma pequena e profunda reflexão, que se alastra em várias direções. Minha mulher, com quem muito divido, que me ouve muito, mas é muito forte no que crê e em suas convicções, que recusa as consequências da morte, a tristeza da ruptura, embora tenha extrema disciplina em tudo, sem sectarismos, principalmente de afeto, emoções, e educação, como exímia e competentíssima professora que foi e que é, tendo sido professora de cegos, pelo que se interessou, como comiseração extrema que tem de pessoas nessa condição, me espantou com frase tão singela que tentava levar consolo ao nosso amigo.

Meu espanto vai encontrar uma razão colocada no “por quê”? Sim, por qual razão tem a vida de enlaçar nosso sentimento tão fortemente que se termina no que seria uma crueldade sem medidas?

Dúvidas, por ela caminhamos, caminho difícil que essa pequena inteligência a nos dada tropeça a cada instante, negaceia tudo que se viu mundo afora, se leu, o pouco absorvido, mesmo sabendo o nada que encarnamos que seria na dualidade o tudo.

ONDE ESTÁ O TUDO?

QUE FALTA DE FÉ!

NINGUÉM QUER SOFRER......

Difícil sofrer.

Só resta rezar.

Celso Panza
Enviado por Celso Panza em 14/04/2015
Reeditado em 12/09/2021
Código do texto: T5206981
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