CARA DO CÃO
Hoje, do nada, recebi uma mensagem no Whatsapp de alguém com quem havia saído, algumas vezes, e que desaparecera, sem aviso ou consideração. Ignorei-a. Pouco depois, ele me ligou e veio com a desculpa esfarrapada de que havia viajado a serviço... Comentou, lamentando-se, que já fazia mais de um mês que não nos víamos ou nos falávamos, mas que estivera muito ocupado e, sem cerimônia, dizendo estar com saudades, arriscou convidar-me para sair. Eu lhe disse: “Não posso... Já me comprometi.” Ele pareceu sem graça, certamente por tê-lo tratado com frieza, e retrucou “Já se comprometeu?”, demonstrando um misto de surpresa e indignação. Ignorei a pergunta e não lhe dei explicações. Então, reforçou a história da viagem, deu-me detalhes, porém, diante da minha recusa a seu insistente convite, disse que me ligaria outra hora para combinarmos uma saída. Eu disse: ”Tudo bem”! Talvez pelo tom submisso e humilde da sua voz, quando desliguei, lembrei-me, imediatamente, de uma frase do meu pai que muito me desagradava... Que, na verdade, eu odiava! Ele a usava após nos dar sermões ou, até mesmo nos bater, em mim e nos meus irmãos. “Não faça essa cara de cachorro cagando na chuva!”, vociferava, rispidamente (para mim, soava a deboche), ao nos ver com cara de tacho, depois do carão ou dos tabefes. Eu achava aquela frase do meu pai o fim da picada... Pensava com meus botões, já que, naquela época, as regras eram mais rígidas e tudo o que crianças podiam fazer era pensar: “Que frase grosseira e mal educada! Já não bastam a bronca e os tapas? Tem, também, que humilhar”? Olhava até pra baixo, enquanto pensava, já que, tenho certeza, meus olhos diziam minha raiva e ele veria meus pensamentos e a coisa poderia piorar. Essas reminiscências da infância provam que quem bate não lembra, mas quem apanha não esquece jamais, a não ser quando visitado por Alzheimer.
Voltando à frase, a imagem dela veio-me à mente de modo muito súbito e forte, como se fosse um vídeo... Não me refiro a meu pai esbravejando, mas à imagem do cachorro defecando sob a chuva e, principalmente da sua cara ao fazê-lo... Associei, imediatamente, a cara do cachorro à desse alguém, quando lhe disse que não poderia sair com ele. Não o fiz por vingança... Realmente tinha uma festa para ir, onde, certamente, iria me divertir... E muito... Muito mais do que com ele, o que, de fato, aconteceu. Só que, imaginando o cachorro e recordando sua voz carente e súplice, senti-me um pouco vingada... Não que ele tivesse, algum dia, representado algo pra mim... Não, não fora nada mesmo, nem mesmo boa companhia... O que me marcou foi a sua indelicadeza e falta de inteligência ao sumir, sem qualquer satisfação, sem ao menos uma ingênua e respeitosa mentira. Poderia ter-me mandado um Whatsapp, como fez hoje, se fosse mais esperto e previsse que, um dia, como o mundo dá voltas, talvez, precisasse contar com minha companhia, ainda que só como amiga. Fora isso, nada mesmo... Não fizera a mínima falta, nem eu tentei saber dele durante esse intervalo de tempo. Mas, quando o deselegante mal-educado reapareceu, parecendo pensar que eu o estivera esperando, ansiosamente, e me deu a oportunidade de dizer-lhe um não na cara, confesso que senti um certo gostinho de prazer sádico, tanto que, depois, quase morri de rir... Pensando nele, com a cara do cão...