As velas

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Que linda manhã de outono aquela. Os raios primeiros do alvorecer, movidos pelo elã romântico do sol, molham minha face. As rosas se abrem, desabrocham, espreguiçam-se após mais uma noite – talvez bem dormida. Aos poucos, o orvalho da noite que se esvaiu dá lugar ao frenesi ofegante da manhã. Olho por entre as frestas da janela entreaberta. Preciso respirar o aljôfar que a natureza me concede gratuitamente.

Todos ainda dormem. Observo-os agora. Minha mulher tem os olhos fundos. Aparenta um sofrimento recente, forte e divisor de águas. Largada na cama, esvaída, parece deveras cansada. Tenho a impressão de estar velando uma mulher triste, solitária. Minha filha está ainda mais entregue aos deleites do sono, ventre voltado para o teto, esparrama-se toda pela cama de mogno que a muito custo consegui comprar. Alheia a tudo, como todas as crianças, tem uma vida toda que a espera. Tenho ímpetos de acordá-las, mas uma força ou talvez uma impotência não me permite. Assustado, desço.

O quarto dos meus pais, localizado na parte inferior do sobrado onde moro, parece-me diferente. A luz que aos meus olhos chega, advinda de um ponto alheio ao meu sentido visual, surpreende-me porque a porta do quarto, apesar da manhã que avança lá fora, está apenas semiaberta, a luz apagada.

A única luz que me chega diferente da luz que do quarto sai é a da entrada principal que meu pai, apesar das reclamações de todos os demais da casa, insistia em deixar aberta durante a noite, alegando que os marginais não se atreveriam invadir a residência de um policial aposentado. Tenho chumbo pra eles, dizia sempre. Se os marginais soubessem que não há arma alguma em nossa casa... O pior é que essa negligência havia se tornado uma rotina nos dois pavimentos.

Observo restos de vela; velas brancas. São muitas. Eram muitas. Agora são apenas amontoados de resquícios de cera comungados com os pavios remanescentes da combustão. Por que ainda dormem? Sinto cheiro de rosas por todas as partes da casa. É o meu aroma preferido. Rosas brancas denotando uma paz aparente; vermelhas, informando o torpor pujante de uma força agora inexistente na casa silenciosa. Outro impulso quer levar-me ao encontro dos meus familiares. Por que ainda dormem?

Meu irmão, no quarto contíguo ao dos meus pais, é outro com os olhos cerrados. Sono forte, pesado, toneladas de sono! A respiração, o ronco. O ronronar amplificado do mamífero quase latente, nem de longe faz lembrar a passividade eloquente do gato tão desejado, do gatinho de estimação das minhas “mulheres” que por diversas vezes rejeitei criar. Como ronca! Essa prosa com Morfeu vai longe! Ainda estão no primeiro ato! Verdadeiro noctívago, meu irmão não dispensará mais uma manhã longe de todos, na solidão, no claustro do aposento do filho solteiro da família.

No quintal, tenho parceiros acordados. Pena que não me entendem. Mesmo assim irei até eles. Penso em pegar alguns grãos, cotejá-los um pouco as ações. Afinal, todos gostamos de afagos, de gracejos, de bons tratos. Todos mesmo! Como andei descuidado. Fazia tempo que não dispensava atenção aos agregados da família. Aquele franguinho é da última ninhada, salvo engano. Como está esbelto, arisco. Não sabia que meu pai agora também criava patos. Belo casal! Sociedade harmônica que formam aqui na periferia, à retaguarda da casa. Ainda não se prestaram às mais acirradas regras naturais biológicas. Talvez esse concerto espaço-quantitativo seja o fator primeiro da paz instintiva.

Em todos os locais por onde passei não me detive nas portas, não havia nenhum grilhão forjado impedindo minha passagem, nenhuma obra de marcenaria se antepondo entre mim e os meus deâmbulos investigativos na redescoberta do meu lar – todas estavam abertas para mim. O portãozinho do galinheiro, porém, enferrujado, mostrando as irrefutáveis rugas do tempo, está fechado não me permitindo entrar no mundo animal tão de mim próximo. Penso em abri-lo, mas as recordações da infância, da época em que recostado aos braços do meu pai – ele de cócoras – jogava milho às galinhas sob a proteção do meu herói inigualável, fazem-me apenas observar os grãos de milho que meu pai talvez houvesse deixado na noite anterior. Não preciso entrar. Apenas os observo demoradamente. Pareço cansado.

Já no meu quarto, deito. Minha esposa não percebe que chego. Ignora-me. Agora que deitado estou não tenho a paz necessária para dormir. Paradoxalmente, sou conduzido para um mundo distante e real. Lembro-me dos amigos, dos inimigos. Será que os tenho explicitamente ou os trago escondidos por trás da cortina do orgulho pedante da ilusão infalível da eternidade do efêmero bicho homem? Uma a uma, revejo as cenas onde magoei ou fui grosseiro com alguém. Parece que terei muito tempo para sofrer à luz dessas imagens... Algo que não consigo explicar ainda me leva a pensar assim. Tenho a consciência conturbada.

À tardinha, quando se cerravam as luzes naturais da mesma manhã de outono, minha esposa, após um demorado banho e, tendo chorado muito, apronta-se para sair. Desce apressada. Está sozinha. Deixa a garota deitada após a hora da sesta. Acompanho-a. Parece mesmo de saída. Penso em interpelá-la, mas sou interrompido por meu pai que pergunta:

– Aonde vai?

– Ao cemitério. Vou levar estas rosas para enfeitar o sepulcro do meu marido.

Nijair Araújo Pinto

Fortaleza-CE, 23 de outubro de 2001.

Do meu livro 'Crônicas e mais um conto'

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