Tudo está fora do lugar aqui dentro

Ainda não sei bem como lidar com essa bagunça. Bagunça agora querida. Tanto repudiei essa zona, e agora sofro em confuso silêncio tendo que juntar os cacos do que sobrou aqui nessa casa imensa. A poeira se acumulou, como sempre faz, e ela já não me incomoda mais, como sempre fez. Juntar pares de tênis de números pequenos de pessoas que estão longe, das pessoas que eu deveria estar atracado agora.

Distância.

Juntar inúmeros tocos coloridos de giz de cera, pincéis com as pontas duras de tinta seca, folhas sulfite engiadas de guache jazidas no cimento queimado com suas paisagens oriundas de mãos infantis viradas para baixo.

Parece que os gatos também sentem algo estranho pairando no ar. A gatinha preta anda carente, roçando o rabinho arrebitado em qualquer coisa fixa que surge em seu caminho. Sei o que ela procura. Sei quem ela procura. O gatinho branco e preto sempre senta taciturnamente perto de onde passo a vassoura. Olha minha dança solitária com a vassoura contra os grãos de terra trazidos por suas patas que maculam o piso branco irritante. O gato amarelo senta sobre a mesa e fica me encarando, com as pálpebras descendo devagar, preguiçosamente. Quer colo.

Eu varro, afasto essa dor que teima em voltar. Não é bem dor física, é uma pontada no coração. Um simulacro de infarto. Uma angústia aparentemente infindável.

O gato amarelo me cobra o colo que deixei de dar no decorrer dessa semana corrida, sofrida. A louça do café apressado da tarde antes da faculdade me espera. As roupas por dobrar, as roupas por lavar.

Eu foco toda minha atenção nas coisas impuras da casa, que carecem candura, esmero, esfregação, química, fricção, suor e palavrões no intento de afastar de mim essa nuvem de "fui de 0 a 100 em questão de horas".

Tudo muda, tudo finda, a única certeza de tudo é o que junto com a pá: o pó. O fim.

Danço com a vassoura sobre toda a finitude de tudo que me circunda.

O cachorro lambe o vão entre os dedos sujos de lama sem parar.

Estendo as toalhas abandonadas que não são minhas e tudo em mim é arrependimento, um desejo regurgitante de mudança que não se torna realidade jamais, parece.

Ser ruim, possuído, sei lá que diabo.

Sou aquilo que repudio, que não quero ser, mas que está intrinsecamente ligado mim.

Bronquice inalterável.

O inferno na ponta da língua, a raiva pelo azar.

A solidão pode ser amarga, às vezes.

Amargo a distância do abraço, a ausência de vozes de desenho animado, do urso Fofinho.

O mico sumiu.

Acendo um incenso, acendo o pisca-pisca, e a louça é limpa entre meus dedos enquanto o pisca-pisca à minha frente fica marejado por tudo quanto é saudade salinizada que sou capaz de sentir e produzir.

Eu sinto o que fazia tempo que eu não sentia: alguma coisa. Que pouco importa se é descritível ou não.

E meus olhos, que eram puro sertão, alagam facilmente.

Tudo está fora do lugar aqui.

Dentro.

10/04/2014 - 22h30m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 10/04/2015
Reeditado em 10/04/2015
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