Meu filho namorado
É bem conhecida do público minha propensão a misturar realidade e ficção em meus trabalhos – cito o método de Tasso descrito logo no início da “Gerusalemme liberata” como justificativa, e uma justificativa muito boa por sinal, se foi empregada por um poeta tão grandioso séculos antes de minha existência. No entanto, também estou deveras familiarizado com o bom e velho provérbio “Truth is stranger than fiction”; tão familiarizado, em verdade, que o presente conto, por questões de demanda popular, é inteiramente embasado em fatos, sem quaisquer adulterações fictícias – e creiam em mim, leitores… Eu não conseguiria inventar os seguintes acontecimentos nem que fosse-me dado o mais excelso gênio criativo.
Aqueles que tenham lido meus relatos de viagem com atenção certamente se lembrarão do episódio na boate em Kishinev, onde me deparo com a stripper/prostituta que acreditava veementemente ter-me conhecido em vidas passadas. Ora! Ela de fato existiu. Não como stripper, e sim como uma de minhas namoradas. A única coisa que fiz foi dar-lhe a aparência física de uma prostituta que, igualmente, também conheci na vida real – mas, seguindo à parte interessante, namorei por exatos sete dias uma maníaca com tal crença peculiar e inabalável.
A conheci em meados de 2020: em agosto, para ser mais preciso. Uma coisa que posso conceder a meu leitor é que era linda, muito linda; uma morena de traços indígenas escultural. Também beijava muito bem, e dava-me abraços como ninguém dera-me antes (ou depois) – mas de nada isto adiantava ante os delírios que era forçado a ouvir. Não sei o quanto posso fiar-me naquilo que me dizia, pois por várias vezes duvidei de sua estabilidade mental – e com razão! – e sinceridade; registro sua história como contou-me.
Quando residia em Mato Grosso, conheceu seu primeiro namorado: portador de transtorno bipolar, não titubeava ela em descrever-me em minuciosos detalhes todos os seus feitos, surtos psicóticos e um caso (dentre todos o mais risível) em que ele, estando um belo dia mais insano que o normal, teve ganas de abraçar e beijar um extintor de incêndio em público. Inegavelmente ela sofreu muito com este rapaz, e nesta parte me compadeci fortemente; e pelo menos a princípio, minha compaixão não se abalou ao ouvir um de seus devaneios mais usuais. Dizia-me que, certa vez, teve ela uma visão “meio acordada” em que, numa encarnação passada, seu namorado era um filho natimorto, e seu antigo marido era uma pessoa de muita sorte, a quem ela devia buscar na presente encarnação para arrumar o que está errado em sua vida. Desnecessário explicar ao leitor mais arguto, creio eu, que ela ainda residia com este namorado, querendo ter dois homens ao mesmo tempo.
Aguentei com bastante paciência durante estes sete dias suas invectivas de cunho altamente sexual e as lamúrias a respeito de como detestava conviver com o namorado; por mais que tentasse desviar o assunto, era a isto que sempre retornava – conseguiu esta mulher a façanha de me fazer cogitar retornar à magistratura, apenas para sustentá-la! Mas eis que, após passar um dia inteiro insultando o namorado com as profanidades usuais, acabou por mudar radicalmente de retórica, passando a defender que, já que era ele nosso filho em vidas passadas, devíamos juntar-nos para “resgatá-lo”: “Você é a peça do quebra-cabeça pela qual procurei há tanto tempo! Temos a missão de resgatar nosso filho, um pobre jovem desamparado e doente!”
Foi esta a gota d’água. Decidi que a partir daí não mais queria vê-la – e admito que uma semana foi tempo demais para ter aturado. Graças à sua insistência, no entanto, a saga prolongou-se por sete meses mais, sendo eu perseguido por toda parte e ainda tendo que dela ouvir: “Afinal de contas você é gay! Sempre soube que era!”
Miraculosamente seu ânimo se arrefeceu depois desta última pérola, e nunca mais voltou a perturbar-me com suas histórias – mas confesso-o a vocês: sim! Sinto falta de suas carícias de vez em quando, e uma pequena parte minha torce para que ela se desvencilhe deste homem e concretize um de seus sonhos comigo que, dentre tantos disparates que ouvi, foi o mais minimamente praticável: fugir com ela para um lugar humilde, longe da civilização, e sobreviver da colheita e daquilo que a Natureza dá.
(São Paulo, 12 de março de 2022
Agradecimentos especiais a Marcos Andrada)