Cigarro
- Você tem um cigarro? – ela perguntou.
Tenho músicas e prosas. Tenho mais que uma simples tragada da morte. Tenho o amor pulsante, tenho a intensidade de uma rajada de vento. Minha mente é uma fusão translouca ininterrupta, tem vida própria, tem sede. Sede voraz por conhecer você, por perscrutar seu corpo com olhos, nariz e mãos, de esmiuçar seus gostos, seus defeitos, seus detalhes, cada vez mais fundo. Meus olhos anseiam por adentrar os seus, observar sua alma. Não se contenta em ver apenas sua pele alva que está lotada de histórias vividas que eu ainda não conheço, seus cachos que tem uma história singular com a passagem do vento, o modo com que você se desloca no espaço, alterando de leve o andar do tempo, como se tivesse uma incomum gravidade ao seu redor.
É isso também. Mas não é só isso que eu quero. Eu quero mais. Eu quero tudo. Por isso é melhor eu me privar do pior.
- Não, não tenho – digo pondo um na boca – Esse é o ultimo.
- Então compartilha comigo.
O que, a cama? Um café da manhã com você vestindo minha camisa, talvez depois de um banho? Que tal uma levada de violão enquanto a gente resolve o que fazer no dia? Você me dá o seu numero certo e aí a gente combina de ir no parque, ou sei lá, compartilhar uns desses momentos que até o ar fica meloso.
- Tá, tranquilo.
- Valeu. Sou Marcela, sou amiga do Luan também.
- Te conheço.
- E de onde?
Saiu meio que sem querer.
- De agora. – minto. Ela ri. Pássaros voam de maneira menos suave e natural.
- E teu nome qual é?
- Caíque. Tá aqui pro show né?
- É, na verdade fui meio arrastada pra cá. Mas aí, tu não parece tá muito afim de papo, se você quiser eu posso ir. O cigarro já tá no fim mesmo.
- Não, só sou calado mesmo.
Eu não queria que ela soubesse que na minha cabeça nós já tivemos 2 filhos. Eu não podia deixar ela saber. Até porque eu não podia se entregar. A entrega dói, a entrega é andar em uma via a 120 km/h tentando passar uma carreta pela contra mão numa curva. Nunca se sabe quando vai vir o outro carro e te jogar pelo para-brisa. Apesar de eu querer possuí-la e senti-la com todos os poros de seu corpo, eu sabia que no final, ia se foder. Podia enxergar isso tão claro quanto o dia, como se estivesse escrito naquela ar tomado pela fumaça e pela boca de batom vermelho forte dela. Descruzei os braços, coloquei a mão na jaqueta, achei uma carteira de cigarros.
- Ah, aqui, menti pra você. Tome, pode ficar.
Ela pegou a caixa, puxou uma caneta que usava pra prender o cabelo (esse movimento fez ele descompassar). Puxou um cigarro, escreveu o numero de um celular e colocou de volta. Pegou outro cigarro e acendeu.
- Tome. Está em suas mãos agora. Obrigada pelo cigarro.
E foi embora. Deixou-me ali, com o destino nas mãos, literalmente. Puxei o cigarro onde ela escrevera o numero e fiquei-o olhando. Acendi o isqueiro, observei o tremular inconstante da chama laranja enquanto contemplava ela indo embora, o vestido balançando junto com sua bunda. Acender o cigarro seria a mesma coisa que apagar a existência dela. Pelo menos, metaforicamente falando e por um tempo. O quanto será que ia doer? Será que valeria a pena? Claro que sim, ele sabia disso. Sempre vale a pena. Algumas vezes você ganha, outras vezes você aprende. Mas perder? A vida não te faz perder, ela te bate, te humilha, gargalha na sua cara. E não tem nada que você possa fazer, não há como se vingar da vida. Então você levanta, mais experiente, mas rico. Somos sempre alunos desse grande professor.
Acendo o cigarro. Eu a fumo, fumo a Marcela. Esse cigarro, imagino, tem gosto do som dela ofegante e suada. Mas não adianta muita coisa. A minha mente é um ser a parte, tem vida própria, gosta de me pregar peças. Eu já tinha gravado o número dela.