O repique da agonia
Antigamente, nos tempos do velho Cercado ou para mais além nas lonjuras das eras, por todo o rincão das Minas Gerais, os sinos das igrejas tinham um papel importante como meio de comunicação.
As diferentes formas de repicá-los informavam os mais diversos acontecimentos aos viventes locais, as festas, a marcação das horas (poucos tinham relógios e aquele era um grande serviço), a iminência de catástrofes (como a aproximação de uma nuvem de gafanhotos), a morte de algum membro da comunidade ou o toque da agonia. Triste ou alegre, dependendo de cada situação a voz dos sinos, mais ou menos aguda conforme o tamanho e largura de cada um, ressoava pelos vales e montanhas, percorrendo quilômetros de acordo com a ação do vento.
Mais triste que o dobre da morte era aquele repicar que comunicava a agonia, que contava as últimas horas de vida de um doente em fase terminal. O lamento do sino se repetia de tempos em tempos, solicitando aos crentes que elevassem aos céus suas preces em favor do moribundo.
Faz algum tempo que meus ouvidos, sensíveis aos inexoráveis ruídos da marcha do tempo, vem captado o toque pungente da agonia. Olho com pesar as estantes abarrotadas de livros. Humildes e calados como velhos sábios, sem se importar com a indiferença e a ingratidão, esperando pacientemente sua hora de servir. E como estão aptos a isso!
Antes mesmo de poder usufruir de tudo o que podiam me oferecer eu já lhes virava as páginas e com olhos infantis devorava sofregamente as ilustrações coloridas com minha insaciável sede de conhecimento. Mal podia esperar o dia em que eu pudesse juntar letra com letra, sílaba com sílaba, até compreender o que aquele emaranhado de caracteres tinha a me dizer. Parecia-me fantástico, mesmo um milagre, que aquele pequeno volume pudesse me contar tanta coisa, me conduzir a tantos países, a tantos lugares longínquos no espaço e no tempo. Quando alcancei a graça da leitura descobri o mundo.
Meus horizontes se expandiram. O livro tornou-se meu amigo inseparável. Daqueles amigos que tudo oferecem sem nada exigir. Está sempre à minha disposição, mesmo que eu o esqueça por um tempo, não reclama, não perturba. Quando novamente o procuro está pronto a me servir, com a mesma amizade de sempre, me proporcionando as mais fundas emoções, entretenimento e principalmente, conhecimento. É o único amigo que pode me colocar diante das mentes mais brilhantes da época atual ou de centenas, até milhares de anos atrás. Privilégio, jóia rara desprezada, “diamante de mendigo” como diria um filósofo do nosso tempo.
Agora ouço os sinos. O toque da agonia. Serão os estertores do livro? Ou apenas o último suspiro do derradeiro sebo? Será que após o sepultamento do último reduto da cultura sobreviverá um livro ou outro para contar a história?