Ancianidade

“Perguntei certa vez a um velho negro que idade tinha. O negro ancião sorriu com indiferença: nunca tivera idade.”

(Eduardo Frieiro)

Caminho apressado por uma rua do Centro, são dezoito horas, o céu carregado ameaça despejar aguaceiro das nuvens cor de chumbo. Ela me interpela, quer falar comigo, esqueço a pressa. Como sempre muito vaidosa produzida, perfumada e, claro, com o sorriso iluminado pelo indispensável batom. Exibe nos olhos a paz e a segurança de quem já viveu muito. Muitos anos e muito intensamente, criou muitos filhos que certamente lhe deram alegrias e frustrações, orgulho e preocupações. Protagonizou, vida a fora, milhares e milhares de pequenos eventos, aparentemente insignificantes, mas que tem a propriedade de forjar o caráter de uma pessoa. Felicita-me por ter voltado a publicar minhas crônicas, reafirma o gosto pelas lengalengas que escrevo.

Sugere-me um tema para meu próximo texto, a velhice ativa. Entendo exatamente o que ela quer: que se faça uma distinção entre a ancianidade e decrepitez. Gosto muito da sugestão, até porque tenho muitos amigos anciões*. Quem me conhece sabe o quanto gosto de velhos, pessoas e coisas, e... Tenho também amigos que ficaram decrépitos.

Houve já épocas em que o idoso era tão valorizado que a palavra ancião tinha conotação diferente. Dizer os anciãos* da cidade ou dizer os principais da cidade era a mesma coisa, ou seja: era como referir-se às pessoas mais importantes da comunidade.

Faz muito sentido ver o ancião como um principal, aliás daí vem a palavra príncipe, deturpada pelos contos de fada. Considerando que ele passou por experiências que a maioria dos outros concidadãos ainda não tiveram, logo eles estão mais aptos a opinar sobre os assuntos inerentes ao bem estar da comunidade. Naquelas sociedades onde o velho era tido como principal e servia de modelo aos mais jovens. O homem envelhecia cultivando os bons hábitos e princípios morais, guardando esses princípios com honradez e comunicando-os a sua descendência. Hoje olhando os rostos dos anciães dessa sociedade às canhas, fico a imaginar o quanto de conhecimento prático se oculta por traz do seu lineamento, cinzelado tão indelevelmente pela ação do tempo, e penso no prejuízo de uma humanidade que menospreza os valores neles contidos.

Ela cita-me o exemplo de uma anciã que recolhe latinhas de alumínio. É uma senhora aposentada que possui outras fontes de renda que podem assegurar-lhe certa tranquilidade financeira, mesmo assim, todas as tardes ela dá uma volta pelas ruas a catar o material reciclável. Vizinhos e amigos que a conhecem, sensibilizados com seu esforço, juntam as latinhas do seu consumo, que ela busca periodicamente em seus domicílios, conseguindo assim uma renda extra todos os meses. Mas o recurso financeiro nem faz diferença. O que importa aqui é que aquela anciã continua, a despeito de sua idade avançada, exercendo uma atividade econômica. Como ela, conheço dezenas de outros anciões (gosto mais desta maneira) que não se apóiam na idade avançada para cultivarem o ócio.

Isso certamente protelará a decrepitez em suas vidas.

Entre os anciões que admiro está um que mantém um supermercado em nossa cidade há quarenta anos. Soube essa semana por uma de suas filhas que o estabelecimento está encerrando suas atividades. Motivo: a família não suporta mais os assaltos a mão armada, freqüentes, e bem sucedidos para os criminosos. Ai! Nem vou contar aqui o desabafo de um amigo de 87 anos acerca da inversão de valores em que estamos afundados. Talvez numa época em que já não estejamos tão deprimidos...

Rezarei para que aquele nosso amigo do supermercado encontre outra atividade que sustente o seu gosto pela vida, próprio de quem nasceu para ser útil. Isso evitará que ele caia na decrepitez.

*Ancião é dos raros casos dos substantivos finalizados em -ão cujo plural se faz das três maneiras:anciãos, anciões, anciães. [Vide Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra (Edições João Sá da Costa, Lisboa, 1984), pág. 183]

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 03/04/2015
Reeditado em 01/05/2015
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