09/01/2015 + Nicole – Uma estrela que se apaga...

Quando peguei um pedaço de doce na geladeira, incontinenti lembrei-me de dar um pedaço pra ela. Motivo pra vir lágrimas nos meus olhos. Isso quatro dias depois do evento.

No dia anterior, estava preparando a minha comida e naturalmente comecei a desfiar uma carne do feijão para dar pra ela. Logo me dei conta que ele não existia mais e que restos de coisas gostosas não eram mais para ela e sim para o lixo.

Glutona, ela comia qualquer sobra quando estava com saúde. Já nos seus últimos dias não comia nada, nem mesmo pedaços de presunto ou carne de feijão que ela tanto adorava. Passou os seus últimos dias sob água de coco e remédios.

Dia 9 às 4 h da manhã, chorou bastante em sua caminha na área de serviço, no térreo. Descemos e vimos que ela tentava mudar de posição e já não tinha forças. Mudei-a de posição e junto com Eloisa fiquei esperando ela dormir com sua respiração ofegante e sofrida. Ela dormiu como se estivesse satisfeita com a nossa presença velando o seu sono.

Acordei às 6.40 h e Eloisa me falou que tinha ouvido um grunhido ou gemido de dor antes de acordar.

Quando desci observei inerte, já sem vida, toda estiradinha como eu a tinha deixado às 4 horas. Olhos opacos pela catarata, fixos num ponto, boca com os dentes cerrados.

Já estava enrijecida, mas seu corpo ainda estava quente.

Quando Eloisa viu a cena, deu um grito de desespero e começou a chorar. Não queria sair para trabalhar. Enquanto isso, eu me preparava para levá-la ao trabalho, como um autômato, fazendo tudo o que era feito diariamente. Não queria pensar nem chorar, pois já havia chorado durante sua decadência física e iminência da sua morte.

Ela ficou quatro dias sem comer nada. Só soro e água de coco. Entregou-se de vez dessa vez. Já havia passado uma fase parecida, mas restabeleceu-se com remédios e outros cuidados e pensávamos que agora também seria assim. Injeções, comprimidos macerados e colocados com água de coco em seringa e nada resolveu.

Em fevereiro faria 16 anos. Dizem que temos que multiplicar por 7 para fazer uma analogia com o ser humano. Se for assim faria 112 anos. Sei que era sua hora, mas sempre é difícil de aceitar.

Quando ela se recuperava das recaídas, parecia um filhote. Brincava e corria alegre, balançando o rabo para mostrar satisfação quando chegávamos da rua. Nem parecia que tinha estado doente. A velhice fazia com que ela tivesse essas quedas na saúde. Mas desta vez, nada. Ficou prostrada uma semana. Um pouco antes, ainda levantava cambaleando, tentado ir olhar a rua e dar aquela volta que ela tanto gostava, no nosso passeio. Mas já não deixávamos, pois ela já não tinha forças para descer e subir os dois degraus do desnível da casa.

Alem disso quase sempre estava urinada ou com fezes nas fraldas que já usava para não sujar a casa toda. Um motivo de eu me sentir culpado, por não deixá-la mais passear pela casa. Ficava confinada na área de serviços no fundo da casa. Eu via nos seus olhos opacos que ela estava olhando a rua através das grades, doida pra sair e não podia.

Tantas outras coisas vinham à minha cabeça com sentimento de culpa. Ela não passeava mais, pois tinha uma grande facilidade de pegar carrapatos. Era reclusa. O máximo que ia era no passeio na frente da casa.

Não tenho carro e de moto não dava pra levá-la a nenhum lugar pra passear principalmente depois de doente.

Foram quase dezesseis anos de alegrias e aborrecimentos que temos mesmo com entes humanos queridos.

Viajou algumas vezes conosco quando tínhamos carro. Participava de tudo o que ocorria na casa. Se pedíamos uma pizza, era uma festa quando o entregador chegava.

Na cozinha, ela ficava atrapalhando a passagem, olhando-nos com aquele olhar pidão, esperando sua vez de comer. Era minha sombra e protetora espiritual.

Digo isso porque uma vez, num centro espírita umbandista, Eloisa estava fazendo um tratamento à distância para uma irmã deficiente mental e que já havia tentado o suicídio (e que depois concretizou num segundo ato). Estávamos numa fase em que toda hora tinha alguém doente na família.

Numa dessas idas ao centro, perguntamos a uma entidade incorporada (caboclo) que nos ensinasse alguma coisa para proteger a casa, pois sempre estávamos doentes. Ele disse com sua voz confusa: - Não se preocupem, pois vocês têm um “negoçado” preto que protege vocês. Ficamos atônitos sem saber o que era. Ele acrescentou baixando a mão mostrando uma distância do chão, como fazemos para mostrar altura de cães.

Eu perguntei: - é Nicole? Ele aquiesceu com a cabeça e reafirmou que nossa cadela protegia a casa e a nós. E se não fosse por ela, tudo estaria pior. Nunca dissemos a ele que tínhamos uma cadela.

Assim foi que observamos que sempre que alguém ficava doente em casa nossa cadela também ficava febril e pelos cantos da casa como se estivesse doente também. Como se fosse um dissipador de problemas da nossa saúde.

Dizem que os jabotis, pássaros e alguns outros animais são protetores das nossas casas.

Essa simbiose entre o animal e o homem é uma coisa magnífica. E esse amigo do homem também nos segue em sua vida espiritual. Só entende isso quem gosta de animais.

Não quero complicar a cabeça de algum leitor, mas quem conhece um pouquinho o espiritismo vai entender o que vou dizer agora.

Um irmão meu já falecido me levou para assistir uma palestra num centro espírita Kardecista, há muitos anos. O palestrante entre outras coisas, contou uma história sobre a alma dos cães.

Como o espírito humano passa por fases de aperfeiçoamento, alguns seres ficam em dimensões espirituais de baixo nível, como assassinos, estupradores, gente que foi realmente má aqui na terra.

Eles precisam ser ajudados por espíritos mais elevados, para conseguirem se elevar, mas aqueles não conseguem penetrar nessas camadas tão densas espiritualmente para trazê-los para cima, afim ajudá-los.

Então, são enviados cães aos “buracos”, essas dimensões inferiores, e eles conseguem penetrar/adentrar e trazer as pessoas merecedoras/escolhidas para a ajuda.

Somente com a ajuda dos cães é que esses seres conseguem sair dessa dimensão que os aprisiona, para poder enfim começar uma nova etapa espiritual, dependendo do merecimento, sua vontade e arbítrio.

Eu já gostava de cães, mas depois dessa palestra que considerei apaixonante, tive mais e mais consideração a esses bichos que só nos dá amor incondicional.

Anos depois, veio a oportunidade de conhecer Nicole. Eu trabalhava como corretor de imóvel com um sobrinho e ele inventou de comprar um cachorrinho. Fomos na casa da pessoa que queria vender e após a escolha dele por um filhote macho, vi a pequena filhote que depois dei o nome de Nicole.

O filhote de meu sobrinho se chamou Schumacher e tinha uma cor champanhe quase dourado e Nicole totalmente preta.

Saídos de uma mistura entre vira lata (pai) e Cocker Spaniel (mãe), eram filhotes muito lindos. Foi uma verdadeira festa quando cheguei em casa com Nicole, pois minha enteada só tinha nove anos e o priminho dela oito. Adoravam cachorros como a maioria das crianças.

Foi uma fase de terror. Sandálias, sapatos, forros de sofás, alguns pés de cadeira, tudo servia para “amolar” os dentinhos. Mas um novo sentido de vida nos foi adicionado, pois estávamos muito desgastados com o problema da irmã de Eloisa, que três anos depois se suicidou.

Passaram dois anos desse evento e meu sobrinho pediu para eu ficar com Schumacher alguns dias até ele encontrar um lugar definitivo, pois a mulher dele não queria mais o cachorro.

Ai sim, foi que vimos o que era o inferno. Nicole e Schumacher juntos pareciam dois capetas. Nas suas brincadeiras de correr como todo filhote, derrubavam tudo o que tinha pela frente.

Alegria contagiante que deixava as crianças constantemente felizes e alegres, nesta mistura de filhotes de gente e cães.

O irmão (Schumacher) conseguiu engravidar a irmã (Nicole) duas vezes. No total foram 15 filhotes que nasceram, mas dois morreram. Sairam lindos. Brancos como algodão e a maioria com a cara do Schumacher.

Já foi outra fase conturbada. Duas ninhadas que deram o maior trabalho até conseguirmos as doações. Quem vinha ver se apaixonava e levava um.

Podem ter certeza que me emociono ao escrever sobre tudo isso. Nunca pensei que o ser humano podia se apegar assim a um animal.

Tive vários cachorros na minha infância e juventude. Chorei por uma cadela atropelada e senti muito a morte de Duquesa, uma cadela que ficou com minha mãe depois que casei e não pude levá-la, no meu primeiro casamento. Quando eu visitava minha mãe, Duquesa se emocionava com minha presença e corria pra debaixo de uma cama se urinando, talvez a emoção/felicidade de me ver desencadeava isso. Escondia-se como se quisesse não me ver pra não sofrer. Coisas que nunca vamos entender nessas cabecinhas.

Outra cadela, na casa de minha mãe, eu ainda criança, lembro o meu sofrimento quando a vi morrendo, pois alguém deu a ela comida envenenada. São coisas que marcam nossas mentes e que nos faz crescer para enfrentar a vida como ela é. Vida, felicidade, sofrimento, morte.

Mas Nicole apareceu numa fase em que eu havia passado muitos anos sem cachorros. No máximo tive alguns gatos, pois minha esposa é apaixonada por esses felinos tão independentes e que só nos dão atenção quando querem. Já os cães são verdadeiras sombras de amor para o homem.

Os dois últimos gatos lá de casa foram envenenados com sardinha em lata, com veneno de rato. O mais novinho, Lion, se arrastou até em casa de manhã cedo para morrer na porta de meu quarto como se estivesse procurando o dono pra pedir socorro. O outro, Binho, morreu em um quintal de um vizinho.

Esses dois gatos conviviam muito bem com Nicole. Não tenho lembranças de brigas sérias entre eles. Só me lembro que Nicole tinha um pouco de ciúmes. Natural, pois ela havia chegado primeiro.

Quando eu chegava com minha motocicleta para entrar em casa todo dia na volta do trabalho ou faculdade, eram três bichos atrapalhando alegremente meu caminho, com o risco de atropelo, pois ficavam exatamente na frente dos pneus. Formas de demonstração de apreço por nós, quando balançam suas caudas ao nos verem.

No caso de Nicole, foram quase dezesseis anos nessa rotina. Motivo agora de eu estar nessa catarse, para conseguir me restabelecer pela perda.

Alguém dirá: “é só um animal!”. E daí? Pergunto eu. Nem minha mulher me entendia melhor do que minha cadela. Esses animais são verdadeiros psicólogos. São criaturas que nos ouvem sem contestar, interagem nas nossas alegrias e tristezas, não discutem e não guardam rancores. Estão sempre a postos para aventuras ou brincadeiras. Estão conosco nas nossas decepções nos confortando imensamente nessas horas, participando de tudo e sentindo nosso sofrimento. Sem nunca dizerem uma palavra. Só mostrando os seus olhares significativos, de preocupação, pena ou felicidade de estarem juntos conosco.

Hoje, alguns meses depois de sua morte, ao olhar o cantinho onde estava durante seus últimos dias, me emociono e sinto-me culpado de não ter ficado junto dela durante a noite que tínhamos quase certeza de que ia partir.

Bastaria perder uma ou duas noites acariciando sua cabecinha para ela sentir que eu estava junto velando pelo seu ser. Esperaria o momento do seu último suspiro e seria uma despedida digna.

Mostraria um pouco da minha gratidão por ela ter existido e dado tanta alegria à nossa família. Mas não fiz isso porque estava cansado. Por isso quero pedir desculpas, minha pequena. Não pude me despedir nos seus últimos instantes. Sinto muito. Aonde quer que estejas, que nessa nova dimensão, sejas muito feliz...

02/15