Resistam os que forem capazes

Quando a tarde cai já é hora de me dirigir à escola. Subirei o morro encoberto pela neblina que por aqui se abriga nesses dias gelados. Lá do alto vejo os veículos passando pela rodovia que liga o Sul do País ao Uruguai, nas casas construídas com pouca madeira vejo a senhora acenando para o marido que caminha em busca do sustento da família; numa residência mais distante a mulher balança a criança que não pára de chorar, esperando o leite chegar; na rua que passa em frente a igreja de São Geraldo moradores reunidos assistem um corpo no chão vítima da guerra entre gangues, comuns por aqui. Sigo mais adiante, pois no próximo ponto desembarco.

Caminho mais alguns metros até chegar à unidade escolar: centenas de alunos conversam no portão, alguns empunham cigarros, outros abraçam seus pares e lá no alto das escadas a diretora observa atentamente os alunos. A polícia passa vagarosamente pelas ruas do prédio escolar: observa, pois semana passada houve troca de tiros entre alunos e vários adolescentes foram levados para o hospital do centro, onde submeteram-se ao atendimento precário. Ninguém faleceu, mas o susto foi grande. Nas paredes do colégio, ainda, figuram marcas dos tiros, vários, diversos, mas de um mesmo calibre.

Na sala dos professores muito agasalho, pois o frio é intenso. Nunca havia feito tanto frio por aqui no mês de maio e início de junho. Nos olhos docentes, a falta de entusiasmo afugenta alguns professores que em início de carreira por cá se aventura. Muitos não voltam, tiram licença; outros persistem, mas desistem ao ver que tudo era verdade. Em um canto da sala, onde os professores estão abrigados, ferve a água para o chimarrão, que passará na roda para ser compartilhado (pobre daquele que sente nojo da saliva do companheiro). Mais a esquerda, os pães para serem servidos aos alunos, e aqueles professores como eu que saem de casa pela manhã para lecionar em outras escolas.

Sinal soando é o aviso para mais um dia de aula, jornada tripla que faço todos os dias. Na porta os alunos me esperam, alguns ansiosos para trazerem-me às notícias do dia, no bairro, estado, Brasil e até do mundo. Sentamos em U para que todos possam se olhar e dividir suas experiências, seus desejos e compartilhar aquele momento, mais um dia de vida. São histórias apavorantes, aos que não possuem coração, um misto de realidade e devaneio incentivado pelas drogas. Alunos de dezoito aos vinte e quatro anos, homens e mulheres que trabalham o dia todo e depois destinam-se ao estudo em busca de um futuro melhor. Na cabeça de cada um, uma história triste, de desespero, infelicidade, perda etc. Jovens que perderam os pais quando crianças, outros que casaram-se aos treze anos, meninas de dezoito anos com seis filhos (como pode?), desamparados pela vida, sustentados pelo amor à família e ancorados no sonho de uma vida melhor.

É por isso que mesmo com todas as adversidades o docente não pode cair nunca. Pode cambalear, mas o colega ao lado deve estar sempre atento, disposto a dar uma das mãos ( por que não as duas?) quando ver seu companheiro caído. Os adolescentes precisam de nós, hoje mais do que nunca, pois a família está dilacerada, desestruturada por um mundo capitalista que só sabe retirar de quem é pobre. Nas garras da incerteza encontram-se nossos jovens que espelham na figura do professor seu futuro amanhã, um parâmetro a ser seguido para seus sonhos.

Da lágrima do depoimento de um aluno, retiro a palavra de apoio, os verbos que farão desse garoto (a) um cidadão, apto a enfrentar o mundo, mesmo com os ventos soprando a favor da tempestade. Não podemos nos furtar num momento como este, cuja família abdicou do seu reino, decidindo residir no castelo da individualidade. Não quero olhar para o meu próprio umbigo, almejo educar.

Sergio Santanna
Enviado por Sergio Santanna em 08/06/2007
Código do texto: T519011
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.