MUSIQUINHA LEGAL

Quem já leu minhas crônicas “O Homem do Terno Branco” e “O Baile da Saudade”, já sabe do meu costume de dar uma paradinha na praça em frente à “Padaria Delícias do Trigo” e sentar, por alguns minutos no banco de cimento que fica bem em baixo de uma frondosa amendoeira.

Aquele banco é um excelente posto de observação para quem gosta de apreciar a vida, as pessoas e a natureza. Navegando nesse mar, o banco, às vezes, nos fornece assunto para nossas investidas no teclado do computador.

Hoje, pela manhã, não deu outra. Devidamente aboletado no meu lugarzinho de sempre, ajeitei o boné livrando a visada para o panorama ao meu redor e, não demorou muito, divisei uma pessoa empurrando, vindo lá da esquina, um carrinho de supermercado.

Deu logo para perceber que se tratava de um morador de rua carregando seus parcos pertences da maneira como a criatividade lhe permitia. Lenta e tropegamente foi se aproximando e, com dificuldade, colocou o carrinho para cima do meio fio encostando-o na amendoeira.

Em seguida, tomou assento ao meu lado.

Com a proximidade pude observar seus traços, sua vestimenta e as características meio padronizadas das pessoas que, abandonadas pela sorte e pela vida, se encontram nessa situação de extrema miséria.

Não tinha mais que uns vinte e três anos o meu vizinho de banco. Era um rapaz de meia altura, moreno mais para escuro, carregando a magreza que a vida ao abandono lhe dera.

Nos pés tinha um par de havaianas cuja sola estava mais fina do que fatia de mortadela. Nos dito cujos, quase não se enxergava a epiderme. A craca parecia ser uma só, desde a ponta dos dedos até o último poro do calcanhar.

A roupa nem era mais roupa! Estava mais para trapo do que para outra coisa. Alguns rasgões mostravam partes da perna e a sujeira crônica fazia com que parecesse mais uma estopa de mecânico de retífica de motores.

O rosto, inchado e um tanto avermelhado indicava a familiaridade do rapaz com algum tipo de droga ou bebida. Os calcanhares deixavam ver fendas verticais que, pensei, deveriam ser fontes de dores e portas de entrada para todo o tipo de germe daninho.

Estava nesse ponto da observação quando, sem dar a mínima atenção para o seu companheiro de banco, meteu a mão no bolso da calça e tirou uma coisa enrolada em um fiozinho branco. Cuidadosamente desenrolou o fiozinho e pude ver que se tratava de um parzinho de fones de ouvido. Eram brancos e pareciam inteiros.

Com outro movimento, tirou do bolso traseiro um outro objeto que pude identificar, como um telefone celular. Com as mãos trêmulas, acoplou o plugue dos fones no aparelho e começou a deslizar os dedos na tela.

Foi nesse momento que quase fundi a cuca! Minha cabeça começou a rodar a mil e procurava encontrar um motivo para entender como uma pessoa tão sofrida como aquela teria assunto falar ou transformar em mensagens para alguém ou algum lugar?

Como faria para conseguir manter as despesas na voracidade das operadoras? Que tipo de conversa e com que tipo de gente se comunicaria? Com familiares, com colegas, talvez?

Nunca na minha vida tinha visto alguma pessoa nesse extremo estado de pobreza falando ao celular! Mas, como tudo tem a sua primeira vez, estava eu diante dessa situação, ao mesmo tempo trágica e cômica.

Mas, o tempo ia passando e o rapaz, com os fones no ouvidos não emitia uma palavra sequer. De vez em quando, soltava uns ruídos guturais que indicavam um tênue estado de alegria. Sim! O rapaz, morador de rua, por incrível que pareça, estava rindo por dentro! Isso mesmo, rindo por dentro!

Por mais que tentasse não consegui definir o que estaria saindo lá do interior do celular que pudesse trazer um pouquinho de felicidade para aquele ser humano no pior quadrante da decadência social.

Não resisti! Olhei para a cara do meu vizinho e esbocei uma risada que foi correspondida com um olhar receptivo e dócil. Aproveitei a deixa e perguntei?

-- Estão lhe enviando mensagens com piadas, anedotas ou coisas engraçadas?

-- Não senhor! Não tenho ninguém com quem falar, não senhor! Esse aparelho eu achei no lixo, ontem! Não serve pra falar, não! Mas descobri que, nele, tem um jogo de bolinhas coloridas que é um barato! A gente custa a ganhar, mas é muito legal quando ganha!

-- Sabe o que é? Quando estou jogando, sei que o celular não sabe quem está do lado de cá! Ele não sabe quem eu sou! Daí, quando ganho ele toca uma musiquinha que eu apelidei de “musiquinha da vitória”! E essa musiquinha toca para qualquer pessoa que ganhe uma parada com ele! Acho que, se me conhecesse, não tocaria nada se eu ganhasse, né? É por isso que fico rindo! Fico rindo por saber que ele está sendo tapeado por mim, um morador de rua! Hehehehehehe!

-- Você está certo, rapaz! A vida tem dessas coisas e quase nem percebemos que há pessoas passando a perna na esperteza dos celulares. Valeu!

Olhe! A bateria do seu celular logo vai descarregar e você não poderá mais dar suas risadas ganhando das bolinhas. Aproveite e compre no camelô um carregador de baterias. Lá na “Feira Permanente” há várias tomadas disponíveis e você poderá reabastecer e continuar jogando. OK?

Em seguida, despedi-me, coloquei uma ajudinha no seu bolso e fui para casa.

Ao chegar, peguei o celular, baixei o “Buble Shooter” e estou morrendo de rir com o jogo das bolinhas coloridas!

Ooooooopppppssssss! Acabei de ganhar uma parada! Está tocando a musiquinha! Hehehehehehehe!

Amelius
Enviado por Amelius em 28/03/2015
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