A professora e a biblioteca
Corria o ano de 66. O vento do outono alvoroçava o cabelo da professora. Quando lembro dela, imagino-a escrevendo, incessante, na sua casa cheia de livros, cadernos, apontamentos, canetas; a casa parecendo um imenso escritório. Talvez possuísse uma Remington, com as teclas brilhantes, bordando os dedos rápidos, em textos densos, pontuados de perguntas e respostas. Era o jeito dela. Por certo, escreveria assim, extraindo da máquina, além do som metálico, a sua concepção de mundo.
Foi ela que me incentivou a visitar a biblioteca pela primeira vez. Certamente, mantinha alguma expectativa em relação ao meu gosto pela leitura, ou talvez, mais do que isso: apresentar-me o livro, como um ente próximo, um amigo, que devesse amar e preservar sua existência, como quem cuida de um ser vivo. Para ela, deveria ser o livro, no seu aspecto físico, o corpo, cujo conteúdo constituiria a alma e que serviria de amparo em minhas questões da vida.
Ela fora sutil. Conduziu-me como um pagão ao templo. O cenário era sagrado, e eu seria batizado no mundo das letras. Não me disse nada, a não ser poucas palavras sobre o hábito da leitura, o prazer em ler um bom livro, o vislumbrar de novas vivências e de outros pontos de vista. Ao entrar na biblioteca, tinha comigo que tudo o que ela dizia se materializava plenamente. O ambiente era claro, luminoso, como na barca que vira há pouco, atracada ao cais. Tinha a impressão que meu sonho ali se realizava. Entrar na barca, passear pelo convés, olhar o mar lá de cima, observar a cidade ao longe, as pessoas pequeninas acenando, enquanto ela singrava os mares em busca de novas aventuras. Sim, eu estava ali. Vislumbrava um mapa com ilhas que se esculpiam a minha frente, pinturas se apresentavam vívidas como se as tintas frescas transbordassem das telas num desencadear de cores e movimento. Cada espaço era reservado a um mundo novo, um quadro de Toulousse-Lautrec, um Rafael ou Van Gogh que se destacavam. Por vezes, se mesclavam noutras imagens e diferentes leituras, nas quais a ausência de matizes se configurava no negro das roupas e noites encardidas nos trens com destino aos campos de extermínio, onde o cotidiano é a perseguição e a morte. E tudo perpassava pelos grandes escritores que desvendavam os dramas reais ou fictícios que inspiravam pensamentos e emoções. Um Machado, um Alencar, um Drumond, uma Cecília Meireles, um Monteiro Lobato. Nomes que se aquietavam nas estantes, mas que abriam portas em minha curiosidade insatisfeita. Meu coração batia forte, temeroso de não retornar àquele lugar sagrado, onde o conhecimento de Eva estava ali armazenado.