A TRADUÇÃO DAS CALÇADAS

Texto em homenagem à realidade.

Faz mais ou menos um mês que elas me chamam a atenção pelo tudo que significam do todo e hoje cedinho, depois de mais uma vez passar bem rapidamente por elas e ressentir sua cena, senti que chegara a hora de escrever sobre o meu sentimento.

Antes preambulo que o tempo da minha crônica é o outono, uma estação especial porque, tanto na aurora quanto no ocaso, tem a maravilhosa capacidade de colorir com pincéis delicados todos os cantos da vida, tristes ou alegres, com cores vivas e melodiosas, e tudo parece tomar nuanças duma calmaria colorida e genuína de fortes tons pastéis que encenam a vida das vidas.

Em suma, outono para mim, é pura poesia e as duas personagens do meu texto decerto são versos perfeitos que me ecoam coloridos a tangenciar a filosofia que incessantemente figura e fustiga toda poesia.

Logo cedo, pelo caminho, o cenário dos meus olhos é de bloco a vista com várias lajes batidas nos telhados a toque da vida que urge acontecer por ali.

O presépio é feito daquele tijolo furadinho que já levanta lares por toda a cidade e que encena a rotina dum grande entorno a atropelar as horas corridas que começam na madrugada a descortinar a tela dum "terra cota' rústico, artístico e sofrido.

Mais uma vez, sentadas na calçada que margeia a curva acentuada da avenida que urbaniza os destinos traçados pelos Homens, elas decerto que são duas meninas amigas que rumam pelo mesmo anseio de aprender algo desde cedo, que lhes faça alguma diferença no caminho e pelo porte de ambas acredito que cursam a casa provável dos sete anos de idade.

Crianças sorridentes, alegres e aparentemente bem nutridas, de uniformes escolares, mochilas e lancheiras, de vidas idênticas que contrastam apenas na genética herdada, algo que na tenra idade as faz "iguais- diferentes" com toda a natural dignidade humana, cujos olhos inocentes das almas puras não fazem acepeção de meros adjetivos : uma delas de tez branca, cabelos loiros ajeitados num "coque" ao alto da cabeça e a outra negra, de cabelos encaracolados presos com fitas vermelhas em duas "marias-chiquinhas".

Ambas lindas, de olhos brilhantes, espertos e expectantes de futuro.

O morno sol de outono, pelo giro da Terra, nesse período nasce lá no alto do morro bem em frente ao portão que lhes concede passagem para o dia selando o final duma escadaria alta, um portão quebrado e de ferro oxidado que prejudica a visão do entorno das escadas que aos meus olhos descem da avenida até deles se perderem pelo terreno abaixo de terra batida coberta de pedregulhos.

Ao lado delas sempre vejo versos que instigam a filosofia: um galo cantador que esboça os últimos cantos da madrugada tardia, que mais parece um ser "gritante" que de qualquer modo sempre delata as horas preciosas de sono que se foram para sempre; um desnutrido vira-latas como uma escolta fiel, uns pardais assustados com o ronco do motor dos ônibus e com a fumaça preta dos seus escapamentos logo pela manhã, e como tela de fundo, uma montanha já desequilibrada de lixo desovado das últimas horas da vida para um destino pouco acolhedor rodeada duma nuvem de pernilongos que emoldura os cenários surreais do que deveria demandar por cuidados urgentes quanto aos seus caminhos.

Hoje pela manhã, um obeso camundongo na calçada, recém saído da base do lixo, retirou um grito ressoado de ambas e foi o que me inspirou a escrever..

Meu consolo: Como sempre que passo as vejo no mesmo cenário em franco compasso de espera, também não me custa esperar, e então, imediatamente penso que logo mais as meninas serão dali retiradas e conduzidas para a dignidade da escola por algum meio de transporte para o futuro.

As meninas não sabem de nada e tampouco sabem de mim e mantêm, no todo do cenário iluminado de outono, um sorriso perene de felicidade infantil, ingênua e atemporal...

As meninas são pura poesia que saem das nossas calçadas rumo ao futuro incerto.

Sequer poderiam escutar meu coração acelerado e indignado por saber que ali a sorte deverá cantar bem mais alto que o galo das manhãs, o que reverencia e agradece a chegada dum novo dia e dum novo possível caminho.

É assim que sinto e versejo em crônica aquela minha calçada de todas as manhãs a torcer, pelas meninas, por todas elas, para que a nova estação do tempo não se interrompa na plataforma do descaso dum forte e perene inverno social...aquele que conduz a tão preciosa infância ao destino do nada.

Quem sabe um dia, por um milagre dos poetizados pódiuns dos Homens, a realidade das calçadas possa ser substituida pelo impressionismo real das meninas de Claude Monet...