LIBERDADES DEMOCRÁTICAS

Hoje, convidado por um amigo que acabara de estabelecer seu escritório em prédio luxuoso no Plano Piloto, assumi o comando do “Clio” e tomei o rumo do Setor Bancário Sul. Após estacionar em uma vaga conquistada com o auxílio de um pedido devocional, dirigi-me ao prédio do causídico.

Ao adentrar à portaria, lá no fundo, logo dei de cara com um renque de roletas, no meu tempo apelidadas de catracas ou, simplesmente, borboletas. No meio delas, um cara de terno preto e óculos escuros que parecia ser o guardião delas.

E era! Quando notou minha aproximação foi logo perguntando se eu tinha senha para digitar no pequeno teclado bem à minha frente, no cocuruto do engenho. Ao notar que era um visitante novato, fui encaminhado a um balcão onde reinava, imponente, um outro cara de terno preto, com óculos escuros, acomodado atrás de um computador.

Todo empolado, envolto em certo marasmo, pediu meu documento de identificação. Silente mas com meu cérebro mais rápido que os pés de Hermes, comecei a imaginar que estava prestes a experimentar um certo tipo de violência muito comum nos dias atuais.

Depois de anotar meus dados pessoais em seu computador, o homenzinho assestou a lente de uma câmera bem no meio da minha cara e avisou que iria fazer uma foto! Paciente, como desejava prestigiar o escritório do meu amigo, quieto, senti o flash espocando lá no fundo do meu olho... Sem qualquer esgar facial, devolveu-me o documento juntamente com “uma senha e um obrigado seco e frio”.

Naquele momento, eu não era mais eu. A partir daquele instante, era somente um número cujos demais dados estavam implacavelmente registrados no “Agá-Dê” de gente que nunca vi na minha vida.

Munido da senha, voltei à roleta e mostrei a senha ao guardião. O fulano deu uns toques nas teclas e “...abre-te sésamo”! Tive acesso ao “hall” dos elevadores. Estava só, ou melhor, pensei que estivesse só, mas ao olhar no espelho para ajeitar as cãs, notei duas câmeras escancaradamente discretas, registrando meus movimentos e até quantas vezes meus pulmões faziam os movimentos de inspirar e expirar.

Finalmente, cheguei ao último andar, onde ficava o escritório. Ao ingressar, como a secretária não estivesse em sua escrivaninha, tomei assento em uma fileira de cadeiras, ladeadas por um cabide de jornais e revistas. Tirei uma edição da “Veja” e comecei a ler um artigo do Reinaldo Azevedo em que o jornalista descia o cacete na turma de camisas vermelhas que faziam a maior bagunça na frente de uma repartição do governo.

Mal havia lido umas dez linhas, a secretária apareceu, dando início ao seu interrogatório de praxe, quando diante de estranhos ali no seu ambiente de trabalho. Alegre por logo ir ao encontro ao meu amigo, atendi-lhe as solicitações e voltei a sentar aguardando a oportunidade de acessar ao escritório tão logo saísse de lá o consulente da hora.

Sem saco para voltar a ler a revista, dei uma olhadela geral no ambiente e “caraca!” Lá estavam quatro câmeras vigiando cada centímetro quadrado daquela dependência onde se aboletavam clientes veteranos e novatos. Mais uma vez senti minha privacidade afetada pelas “normas da segurança empresarial”, imitação das posturas da segurança governamental.

Depois da festa, dos abraços, dos parabéns e dos elogios pelo bom gosto e harmonia do ambiente, deixei com meu amigo os votos de felicidades e de crescente sucesso em seu novo escritório. Dei-lhe o abraço de despedida e, novamente fui encarar as câmeras do elevador bem como as catracas e as câmeras do corredor que olhavam lá de dentro para a saída da porta principal.

Meu carro estava estacionado em uma vaga que, como disse, me foi conseguida por um pedido devocional. Mas, independente disso, mal acabara de colocar o cinto de segurança, sem saber de onde, bem ao lado da minha janela apareceu um sujeito esquisito, sujo e barbudo, pendurando, no braço, um pano que de tão encardido nada mais tinha do que fora quando branco.

Era um “flanelinha”! Juro que, se aquele cara passasse no meu carro aquele raio de pano, o pobre iria ficar mais sujo do que se estivesse saindo de um lamaçal! Pô! E não é que o cara estava me vigiando e tratou de ir garfar um trocado à guisa de estar “tomando conta do meu carro”? E olhem que o cidadão fazia cara de autoridade!

Era o verdadeiro dono daquele espaço público que a ausência da fiscalização oficial lhe conferira.

Tratei de driblar os fluxos e contra-fluxos do trânsito e meti a cara no “Eixão Norte” rumo à BR-020, rumo a Sobradinho

Já na estrada, perdi a conta das placas avisando “Rodovia Fiscalizada Eletronicamente”. Mais adiante, a cada “centos metros”, os famigerados “pardais” com seus dois olhos botocudos bisbilhotavam todo o tráfego fotografando todo mundo e seu Raimundo. Ali, já era! Bobeou, dançou!

Nas imediações do Colorado resolvi dar uma paradinha no posto para dar uma “cachacinha” ao “Clio”. Sendo esse meu amigo acostumado com as goladas de etanol, evito-lhe o cheiro incômodo da gasolina mais cara do mundo. Nunca lhe farei essa malvadeza.

Pois bem, no posto, bem na minha frente e ao lado das bombas, havia câmeras olhando para cada lado do azimute fotografando minha cara de todos os ângulos imagináveis. Senti-me um desafortunado, quem sabe um bandido, um escroque, um possível atentado à segurança nacional! Incomodado com esses maquiavélicos procedimentos do “sistema”, voltei à estrada.

Já dentro da cidade, novamente pardais, câmeras, carros da fiscalização do trânsito, tudo de olho em mim observando meus movimentos e meu comportamento. Putz! Pensei: Parece que estou valendo menos que um simples cocozinho de mosca!

Mas, foi então que o pensamento acrescentou: Só você, não, meu velho! Todos, sem exceção, estão sendo vigiados dia e noite! Qualquer passo dado está sendo registrado e anotado

Prosseguindo passei por uma farmácia para comprar um medicamento receitado por minha dermatologista. Na farmácia fui obrigado a dar meus dados pessoais, identidade, residência, CPF, etc... etc... Isso só para comprar um medicamento. Além disso ficaram com uma das cópias da receita médica.

Noutra farmácia em que se podiam adquirir medicamentos de uso continuados pela “Farmácia Popular”, novamente a sangria nas minhas referências pessoais que, há um tempo atrás eram coisas exclusivamente minhas e que eu só daria a quem desejasse, nunca de maneira tão escancarada como hoje se exige das pessoas. Até telefones, pô!

Como precisava extrair um talãozinho de cheques, fui ao banco e caí na armadilha de um caixa automático instalado há poucos dias atrás. Era diferente dos costumeiros pois exigia que colocasse meu dedo em um leitor digital. A máquina, sem a menor cerimônia impedia a operação alegando que minha digital não conferia! Tudo isso depois de exigir uma penca de informações sobre a minha qualificação e identificação bancária.

Já xingando até a mãe de todos os banqueiros descobri três caixas convencionais, lá no finalzinho do salão, e consegui meu pretendido não sem antes cair, novamente, com todos os meus dados pessoais. Durante todo o tempo em que lá estive, fui rigorosamente observado por uma penca de câmeras visíveis e invisíveis.

Não obstante toda essa bisbilhotice, meia dúzia de “seguranças, armados”, olhavam para os circunstantes com as mãos apoiadas nos coldres. Saí resmungando: Essa gente olha, permanentemente, para nós, um bando de marginais ou possíveis assaltantes de banco! Putz! Tratei de sair dali e fui buscar abrigo em casa. Dá até vontade de não sair mais à rua!

Finalmente, passei no supermercado para comprar alguns itens que a patroa pedira. Na saída, novamente me arrancaram mais um naco da de intimidade: Seu CPF, por favor? Com isso, a Receita Federal passa a colecionar meus hábitos consumistas. Sabe quanto gasto, onde gasto, o que compro, com que freqüência, etc...

Como também o quanto ganho, fica fácil saber se estou gastando o que me é legítimo ou se estou exorbitando com uma grana que os dados não explicam! Caraca! Será que eu ainda sou eu mesmo?

Coloquei os sacos no carro e fui para casa. Novamente defrontei-me com as câmeras. No portão externo, senha para abrir. No portão interno, outra senha para abrir. Nos corredores e no elevador, câmeras e um aviso “Sorria! Você está sendo filmado”!

Ufa! Enfim, esparramado no sofá, do lar doce lar ouvi de minha querida esposa: Onde você estava que demorou tanto? Pensei que não fosse mais voltar!

Nem retruquei! Enfiei a viola no saco e vim cuidar de escrever esse texto que vale para todos nós! Sim! Vale para todos nós que somos considerados como “marginais potenciais” pelo sistema e pelo governo.

Ledo engano se você pensa que está fora dessa, meu velho! Ledo engano! Olhe-se no espelho! Pode estar certo de que perdemos nossa intimidade e privacidade. Somos legítimos usuários das “liberdades democráticas”.

Amelius – 25/03/2015

Amelius
Enviado por Amelius em 25/03/2015
Reeditado em 25/03/2015
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