Lembranças Inventadas

É assim que ficamos, sabe? Assombrados. Mas não há coisa alguma de terror ou suspense nesta prosa, na verdade caro leitor, é bem pior. Sim, posso lhe garantir a veracidade de tal caso. Ah, se me fossem meros espíritos perturbados, fantasminhas de armários! Dar-me-iam adrenalina e coragem para a vida toda, um impulso daqueles que ao perder a força deitar-me-iam em minha cova. Não obstante, a saudade é por demasiada pior, pois nada nos há de oferecer, a maldita tira de nós e se ri em nossa face.

E é assim que ficamos, bestilizados. É como a história de um jovem rapaz que veio se aventurar pelas terras centrais deste país. Pois este mesmo, aqui ficou muito pouco, tão pouco que nem me chegou a parecer real aquele adeus. Sabemos quando encontramos o nosso lar, seja ele gente ou espaço mesmo.

Levei-o pelas ruas da cidade, queria mostrar-lhe tudo. "Olha, esta que deveria ser tua casa! Tua cidade, menino!" Mas não disse isso não. Ideia ingênua, espontânea, "há de ser ver as consequências!" eu não ouvi, ninguém me disse isso.

E daí, é como a morte quando o indivíduo se vai para antiga terra, no fim é tudo terra, não é mesmo? É a terra da beira da estrada que vem de não-se-sabe-onde iludir-te, trazer restos de alguém que não sabes se é ele ou não, uma mensagem. E depois da morte vem as assombrações. Em todos os casos, não duvides.

Todos os dias, ainda penso que ele estará lá a me esperar na sorveteria para contar-me anedotas. Pois de fato ele está lá, todos os dias! E se não visse, aumentava a saudade, deixava-me melancólica. Mas, se vejo sou louca! Oh, que disparate.

E continuam a perseguir-me pelos bairros e esquinas, são tão reais, como se o morto estivesse ainda quente no caixão e os espíritos ainda sejam como matéria e como espectro da alma. Eles estão lá, quando vou ao shopping e vejo que estamos a mais de uma hora escolhendo CD's e DVD's que não levaremos, que estou a passar pelo Studio e acenar-lhe com toda uma emoção, que ainda estamos vendo o pôr-do-sol no Disco e que ainda de longe, na represa, posso procurar por seus cabelos quase compridos e seu uniforme do qual nunca me esquecerei.

É o vazio que deixou tudo aqui carente. E se venho a ter contigo é alegria e ao mesmo tempo angústia. Mas se ajo ao contrário, a saudade vem e sufoca, aperta o coração, como se na goela estivesse entalado em trem, sim, o trem que passa aqui na cidade às dez da manhã perturbando os leitores assíduos da biblioteca. E é assim que ficamos, sem ação, sem forças, inertes. Com nada.

Bem, é que tem tudo, tem nada, tem outras categorias e tem também aquilo que a gente exclui para explicar depois.

Na verdade na verdade, ficam-nos as lembranças do que foi e do que será, e o segundo pode-se chamar lembranças inventadas, que são aquelas que a gente tece na cabeça pra entreter o coração durante a noite, engana-se aquele que pensa que o coração vive de batidas e entrelaces de veias e artérias. Vive é dos filmes que a mente mente (produz), assim ele sossega. É bem assim que ficamos.

Dái o coração, com um tempo, cansa de ver filme e começa então a desejar, do fundo dele mesmo, que tudo pudesse acontecer, de fato. E é aí que entra a moça esperança, moça de beira de estrada ou de ponto de ônibus. É ela que faz-me rir a esperar ansiosa que um dia ele venha montado a cavalo me levar para desbravar todos os sabores e sensações desta terra e desta vida, para além dos fantasmas que me cercam, pois eles esperam também que ele volte, para que eles possam descansar em paz dentro de mim mesma, e não mais fora.

Liz de Flor
Enviado por Liz de Flor em 24/03/2015
Reeditado em 24/03/2015
Código do texto: T5181746
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