Quando o piso começou a balançar

Recebi uma notícia que me deixou sem chão: o piso do pequeno quarto que alugo na Asa Sul começou a desprender e precisava ser trocado. Isso depois que Dona Lúcia, a dona do quarto, jogou em cima dele dois produtos químicos fortíssimos que deveriam facilitar a limpeza. Queria acabar com toda a sujeira, e de certa forma conseguiu, pois não imagino que esses azulejos voltem algum dia a ficar sujos, especialmente depois que não forem mais usados. Quando o piso começou a balançar, Dona Lúcia deu-se conta do que havia feito, mas já era tarde: todo o meu quarto flutuava. Eu não poderia ficar ali, evidentemente. Dona Lúcia pediu mil desculpas, disse que entendia a minha chateação e que iria me abrigar o tempo que fosse necessário. Tratei de tranquilizá-la, porque, no fundo, eu estava achando aquilo até bastante divertido.

Dona Lúcia é uma senhora já perto dos 70 anos. Mora com o irmão, alguns anos mais novo. De nada lhe adiantaram os setes casamentos (sete casamentos) que teve ao longo da vida. Renderam-lhe duas ou três filhas que mal a veem. Sua única visita é a de um irmão, médico, bem sucedido, que aparece todo sábado, fica uns 15 minutos, dá alguns conselhos e depois se vai dizendo “aquele abraço”, mas sem nunca abraçar. Eu vejo essas visitas de relance, pois o meu quartinho fica aos fundos da casa dela.

O irmão mais novo é um personagem bastante curioso, que raramente sai do quarto, onde escuta programas católicos e dorme de luz acesa. Dona Lúcia me contou uma vez que ele nunca esteve de bem com a vida, nem na infância, e nunca gostou de alguém. Volta e meia eu escuto discussões entre os dois, mas também é verdade que o homem muitas vezes se dispõe a ouvir o que Dona Lúcia tem a contar – e nunca é pouca coisa.

Gosta de falar, a Dona Lúcia. Verdade que nem sempre fala coisa com coisa, e também não ajuda o fato de tomar remédio controlado. É bastante nervosa, e era coisa de dar pena como ela se afligia com o problema do piso do meu quarto. Mudei-me, pois, para o quartinho de visitas da sua casa. Recebi as boas vindas, quase solenes, do seu irmão, ouvi as recomendações de Dona Lúcia, recebi autorização para fazer praticamente tudo dentro de sua casa, agradeci, e nos despedimos, cada um indo para o seu quarto. Assim passamos a nossa primeira noite juntos: completamente separados.

Pela manhã, tomei banho e café, aprontei-me para o trabalho e não vi nenhum dos dois. Que modo engraçado de se morar na mesma casa! Naquele dia começaram a por o piso novo no meu quarto. Dona Lúcia achou que levaria semanas, mas era coisa de dois dias só. Isso a alegrou, e na manhã do outro dia eu a encontrei bastante animada. Ela estava morrendo de frio e vestia um casaco de esquimó. Encontrou-me de manga curta, o que me fez explicar que frio mesmo só existe no Sul. Ela ria. Sentou-se comigo enquanto eu tomava café e, em meio às gargalhadas, reviu todo o drama do piso. Eu mal abria a boca, apenas deixava a sua euforia correr solta. Perguntou-me coisas do meu trabalho, comentou algumas coisas que havia visto no noticiário e disse que lavaria a louça por mim. E por todas essas coisas eu senti que me tinha como filho.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 24/03/2015
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