Vagaroso É o Tempo Morno

Depois de tantos anos a correr a vida mudou. Correr é olhar mas não ver, é temer o relógio, é dizer, à margem do tempo interior, a razão da falta ou do atraso ou da ausência. Correr pela sorte, pela clemência e chegar antes ao lugar onde a vida se mostra longínqua para lá dos vidros. E agora sem pressa, sem horas nem mandos? Agora, na incerteza dos primeiros passos, sem laços que não sejam os teus, livre de regras, aprendo a olhar de mais perto, com outro interesse e vagar. Quem disse que um jardim é um conjunto de relva, árvores e flores? - Quem disse, por certo ainda corre, ainda engole à pressa o bocado e sai para o pesadelo do dia. Trânsito, poluição, agonia. Traições, más gestões, crueldade sorridente e, pendente a incerteza. Será que me despedem? Fico ainda na Empresa?

O meu é por certo um jardim novo. As árvores têm personalidade, jeito diferente, harmonia. Algumas têm ninhos e pássaros, cantoria. Outras, austeras, mostram-me a aragem no alto, libertam perfume, folhas e flores. Cada coisa em seu tempo e espaço, com lugares marcados para todos. A baba seca de um caracol diz dos seus passeios, a teia de uma mínima aranha me conta da esperança e as formigas limpam e transformam invisíveis mundos que são parte do nosso e nunca antes o soubemos. Insetos e aves, o jogo de sombras no muro, o bonito que é o trevo em flor, o musgo a revelar que ali, à sombra, Deus também esteve. Protegidas as begónias, cansadas de ter tudo, talvez pudessem sonhar com um futuro sem leis. Vida agreste da erva, imponderáveis e surpresas. As carências aguçam o jeito, a fome e o frio se não matarem fortificam. Poderá alguém como as begónias ser feliz fora dos vidros?

E sinto o dia. Tomo-lhe o pulso e vejo como a luz me diz do seu caminho, como o sol o anima e o calor torna ousadas as lagartixas. E, sabendo hoje destas coisas novas e da necessidade de as respeitar e à sua tranquilidade já não piso a relva e evito retirar as pedras dos canteiros. É que, debaixo delas, há ainda outra vida que não é inteligente mas que sofre ou morre se eu quiser. E eu não quero.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 23/03/2015
Reeditado em 23/03/2015
Código do texto: T5179948
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