A prisão do cão e do relógio

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A vida na caserna é cheia de pormenores que a distingue das demais. Quase sempre encontramos instrutores recheados de algumas neuroses, de alguns fetiches ou apresentando comportamentos e atitudes, no mínimo, exóticos. Equilibrando essa gangorra, encontramos do outro lado, também não raramente, recrutas com iguais disfunções, quer oriundas de experiências advindas do mundo civil ou incorporadas quando do ingresso na vida militar.

No último recrutamento do qual participei como oficial instrutor de tecnologia e maneabilidade contra incêndios, havia um major – o subcomandante do Grupamento – cujo comportamento excêntrico descontraía sobremaneira a tropa. Era um alívio ouvi-lo ao final de cada expediente. Durante suas preleções com a tropa, sempre aconselhava e expunha algumas irregularidades de conduta que poderiam privar recrutas de um final de semana com a família. Fazia questão de frisar os erros que implicariam o cerceamento da liberdade de ir e vir – o famoso ‘ssd’ que todo e qualquer milico poderá traduzir a quem possa interessar. Dizia:

– O recruta que beber e chegar aqui na segunda-feira dizendo que sofreu acidente de moto vai ficar preso! Vai passar o tratamento todinho preso. Quem for beber não deverá pilotar, entenderam?

– Sim senhor!

– Ei. Tu aí. Tu mermo, macho!

– Eu, senhor?

– É! Tu é doido, é!? Por que é que tu não pára de mexer em forma, hein!? Tu come rapadura com farinha quando sai de casa pra chegar aqui turbinado, é? Aproveitando aqui a conversa: qual é o único meio de transporte seguro pra quem bebe, qual é?

– Carro, senhor! – grita o recruta 626 do terceiro pelotão da segunda companhia.

– Que carro o quê, seu louco! Tu nunca leu o Código de Trânsito não!? Hein!? Quem é o teu instrutor de Legislação e Trânsito!?

– O senhor, major!

– Tá doido! O único meio de transporte seguro pra quem bebe é o jumento! Sabem o porquê? No lombo do jumento se tu tiver ‘moído’ e cair ele vai te deixar em casa. Então, senhores, está avisado. Quem for ‘moer’ na folga só poderá andar em qual tipo de transporte?

– Jumento, senhor! A tropa responde em voz altiva, sorrindo discretamente.

– Agora tá certo.

Em determinado período do recrutamento, a partir do juramento de compromisso, os futuros soldados começam a concorrer a uma escala de serviço de prontidão.

Durante um dos meus serviços de oficia de dia, fui abordado pelo sargento adjunto que me trouxe o seguinte problema:

– Tenente?

– Eu.

– Tem um soldado aí dizendo que está com o ‘diabo nos couro’ e não quer assumir o posto de serviço de jeito nenhum. Tá com uma cara feia da porra! Dá até medo olhar pra ele. O que o senhor determina?

– Vou dar ciência ao major.

– Liguei pra casa dele e a mãe dele já está vindo pra cá – diz meu adjunto.

– Por que não me avisou antes, sargento!? Vamos resolver o problema aqui mesmo, rapaz. Não tinha nada que ligar pra ninguém alheio ao quartel. Aguarde aqui. Vou ligar para o major.

– Boa noite, major. Meus cumprimentos militares. Tenente Lunga, oficial de dia.

– Algum problema?

– Tem um recruta aqui, major, dizendo que incorporou um espírito do mal.

– O quê!? Peraí que eu chego já.

Decorridos alguns minutos, o major chega ao quartel. Recebe as deferências de praxe e entra na Unidade. Vou até ele e repasso detalhes do ocorrido até então.

– Chame o soldado! Determina calmamente ao ouvir meus esclarecimentos.

O recruta vem escoltado por alguns companheiros que o conduziam assustados com a situação e a possibilidade de uma crise diabólica. A mãe, apesar de já estar no quartel, não o pôde ver e estava sendo tranqüilizada. O major ao observá-lo, perguntou de pronto:

– O que é que tu tem, macho?

– Um espírito, senhor.

– Sim. E aí? O que é que tu quer?

– Ele quer que eu vá embora, senhor. Não posso tirar o serviço porque ele não me deixa em paz.

– Tu é doido, é!? Ir embora estando de serviço! Que conversa boba é essa, rapaz! Tenente!?

– Pronto, major.

– Tire-o do socorro e o coloque como telefonista. Faça a permuta, certo?

– Não posso, major! O espírito não vai deixar eu ficar. Ele quer sair daqui – interpela o recruta.

– O cão quer sair, é!? Então tá. Tenente? Tive outra idéia. Coloque-os, ele e o cão, de serviço. Ponha os dois na guarda do quartel. Assim ninguém entra hoje. É bom que protege mais nosso aquartelamento. Tá bom recruta? Aqui não tem essa não, rapaz! Doido aqui a gente trata é no pau! E se o cão botar boneco pode prendê-lo, entendeu Tenente!?

– Sim senhor, major! E quanto ao atraso dele ao assumir o serviço?

– O quê!? E ainda chegou atrasado!?

– Foi o relógio que não me despertou na hora, senhor.

– Foi!? Então eu vou deixar o relógio preso dois dias e darei quatro dias de prisão em você que permitiu que o relógio atrasasse, certo? Quer me fazer de besta! Viu, Tenente: bote-o juntamente com o cão de serviço na guarda do quartel e mande publicar no boletim a prisão dele e do relógio. E antes que eu esqueça: prenda o cão também que chegou atrasado com ele para assumir o serviço de socorro.

– Sim, senhor.

E o restante do serviço transcorreu na mais absoluta normalidade.

Crônica do livro Crônicas e mais um conto

Nijair, Ed Premius.

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