COLORIDA SÓ PELO SOL

Era domingo . Justo , calmo , incensado pelo aroma de flores deliciosas – as do meu vizinho , que sempre teve um belíssimo jardim bem aqui , do meu outro ladinho de parede - , com as calçadas livres dos motores e a pista de rolagem deserta dos malucos . Mas não era o caso de “ ... praia e sol ; Maracanã , futebol ... “ . Era , e apenas , o raiar do primeiro dia da semana inventada pelos homens , em que boa parte do universo não fazia a menor idéia de que passaria a trabalhar , pondo de lado aquela mundial vagabundez poética , infinitamente , alardeada pelo Vinícius de Morais e Cia . Domingo . O dia santo .

Em casa , o preparo militar de mais uma churrascada , aniversário de um sobrinho . Cozinhas em ponto de bala , família espalhada em todos os cantos , televisão , futebol e cerveja . Para os que têm o hábito de torcerem os seus belíssimos narizes ante o desenrolar desses eventos particulares , as cenas domésticas atestavam a existência do inferno na terra , sim . Mas nestas situações , sempre há o detalhe , curioso : as democráticas aceitação e participação de todos os diabinhos , tenham lá classe ou não . E eu ali , tratando de abrir a garrafa empoeirada do Merlôt presenteado por um amigo das antigas , a quem eu não via a séculos . Ah , passei anos tentando mas não consegui simpatizar com o gelo , com a amarelice . Em certos momentos sociais , na falta de artigo melhor , aceitava alguma aparição do tipo bock . Enchi o meu canecão , adornado pelo escudo do Flamengo , e dei partida no meu tour caseiro , indo de cá pra lá, de lá pra cá , ora bancando a conselheira , a arrumadeira , a governanta . Olhem , isso até que alivia o stress , e muito , além de ser o mais dileto exercício de inutilidade social , o célebre momento em que a todos nós favorece o observar , de cadeira , como gira o mundo dos notáveis seres humanos ...

De repente , o soar da campainha . Claro , ninguém deu a mínima . Eu é que deveria fazer a gentileza de mover o esqueleto na direção do portão , uma vez que não estava , mesmo , servindo para coisa alguma . Canecão e eu demos de cara com um jovem , armado até aos dentes com tecnologias da comunicação , dizendo ser do Ibope . Tive que conter um sorriso , nada marôto , logo nos primeiros minutos da partida . Hora de pensar nos lances a seguir , porque essa coisa de gol contra não podia ser testemunhada . Daí , Canecão me cutuca . E me prepara .

- Bom dia , senhora . ( perdido ; entre os óculos , a prancheta , os papéis e a traquitanda eletrônica )

- Muito bom ... ( um gole enorme , descendo o gogó bem devagar )

- Para começar , eu preciso que a senhora confirme algumas informações ( já , devidamente , encontrado )

- Se não for a respeito do meu credo religioso e nem do meu partido político ... ( Canecão solta uma gargalhada , derrubando vinho no chão )

- Ah , não . São aquelas coisas de nome , endereço ... (e ele acreditou !)

Por quê os tais pesquisadores de rua precisam carregar tanta bagulhada ? Não lhes bastaria o Palm ? Canecão também se espanta , vira a sua alça para o meu peito , desiludido .

- Quais os canais de televisão que a senhora , a sua família , costumam assistir ? ( debochista , levantando o queixo e espremendo os olhos )

- Todos . Nenhum . ( Canecão ; sugeriu uma cena do filme Cruzada )

- Como assim ? ( desprezível ; aff ... )

- Rapaz , eu faço uso do controle remoto como se ele fosse uma Ar – 15 na mão dos soldadinhos do tráfico ( Canecão , degelando ; medão )

- Então , isto seria mudando o tempo todo ? ( irritante )

- Não por ser volúvel . Tenho bem definidas as minhas convicções . É que sou exigente ( Canecão , rindo de engasgar )

- O seu nível de exigência refere-se só à programação de tv ? ( ainda mais irritante )

- Não , aos canais . Nenhum deles exibe nada que preste . ( absoluta )

- A senhora assiste a Rede Globo ? ( meio que disfarçando o riso ; safadeando )

- Quando criança , era obrigada . Mas eu cresci , como você pode notar , não é ? ( Canecão ... Canecão ... Ô , Canecão !! )

- A senhora ainda não me disse o quê acha . ( abusando da minha crença na paz mundial )

- Rapaz , eu não acho ; ainda estou procurando . E você , até agora , não consegue me dizer nada que faça sentido . De onde você saiu ? ( ôgra )

- A senhora não esta colaborando ... ( milico ; um tipo verde oliva estragado , fedido e bem old fashion )

- Colaborando com o quê , ô Inimigo do Rei ? Você tem a cara de pau de aparecer no meu portão , tocar a minha campainha e curtir com a minha cara ? Esqueceu de prestar atenção à folhinha na parede da cozinha na casa da sua mãe , não vendo que hoje é domingo , dia santo ? ( Canecão pede pra ser deixado em cima da casinha da bomba ; asa escondida na direção da parede )

- Não ... é que ... que ... ( garoto ; interrompido )

- Não tem mais , nem meio mais ! Vaza daqui ! ( Canecão , assistindo )

- A senhora é muito mal educada ! ( esquivo , sentindo que um bate na boca poderia começar assim , em meio a luz do dia )

- Ah , eu sou , sim : Frequentei escola no tempo em que professor era respeitado ; que aluno tinha é que estudar e saber ler e escrever , as suas obrigações , para não nos envergonhar nos vestibulares ; que salário podia valer todas as penas ; que educação urbana não era manifesto de ET ; que ao invés de celulares , internet e Facebook , o cidadão ia pra dentro das repartições públicas e conseguia ser atendido ; que a gentileza gerava , e sim , gentileza , até no meio da malandragem ; que policial não almejava ser bandido do sistema . E quer saber ? Esse país não me merece mas também não merece você !! ( Canecão , vibrando ; sacudindo o vinho de um lado a outro )

Àquela altura , toda a parafernália dele tinha caído ao chão , por conta do susto e do surto , e todos os que já estavam na rua , cachaceando , tinham virado os olhos para a nossa direção , querendo saber qual era a do mocinho do Ibope . O pobre tratou de arrebanhar tudo para dentro da mochila , azulando . Canecão ? Vitorioso , jogou-se em minhas mãos , asa posicionada para a rua , encarava todas . E fora aquilo , gente boa . Confirmação da saudabilidade das uvas , espremidas , pisadas , chacoalhadas e guardadas em tonéis centenários ou nos armários dos cidadãos suburbanos , adornadas por garrafas maravilhosas , em derramando-se sob a versão de líquido , nascendo como vinho para as prateleiras dos mercados , para as situações de presente entre os amigos . Terei , sempre , a oportunidade para continuar acreditando que “In vino , véritas” , sem nada ter a ver com os bebuns das hordas . Nada a ver ...

Josí Viana
Enviado por Josí Viana em 16/03/2015
Reeditado em 17/03/2015
Código do texto: T5172162
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