Ruas Sanitárias
Uma caminhada pelas ruas é suficiente para fertilizar a imaginação e ter a impressão que cada ladrilho e rejunte são contadores de histórias. Umas boas e saudosas; outras amargas e que se quer esconder sob o concreto e asfalto. Mas fica a lembrança de algo bom, realmente. Mas, todavia, suas calçadas tagarelam hálitos etílicos e drogadiços, fétidos e maltrapilhos, sem esperança ou sem a simples ideia do que seria ter uma. São seus moradores, permanentes habitantes das passarelas imundas que evitamos ver e olhar, mesmo que seus odores viscerais exijam atenção de nossas narinas francesas. Uma subsociedade sem posições, onde o homem vira mulher; a mulher vira bicho e o bicho vira gente respeitada. Sociedade mutável e eclética, valendo mais aquilo que menos se tem. Aguardente transforma-se em água, como num evento bíblico. Paliativos restos alimentares são deixados ao acaso, indicando algum sinal de vida. Detritos, surrealisticamente, viram manchas escuras no relevo urbano. O dia nunca termina, durando aquela eternidade dos tempos de menino, onde não havia nenhum compromisso. Apenas o momento e o derradeiro segundo do relógio. Manhãs trocando de lugar com as Noites, sem nenhuma burocracia. Lá fora, o Mundo correndo e gritando buzinas psicóticas não percebe que está sendo observado da margem, sobre acentos cativos e não numerados. A plateia apenas aguarda o grande desfecho para a ceia do crepúsculo. Seus garçons, almas abastadas, esperam com a ação subtrair dívidas da consciência coletiva. Dedicam energia, atenção e temperos aos hóspedes moribundos. A madrugada avança chamando mais um eterno dia após dia, noite após noite, num cíclico vício cotidiano de restos e sorrisos embriagados, viventes das ruas sanitárias do Centro Histórico de Porto Alegre.