FINDO MUNDO

uma crônica de Alcântara Batista para o DESFIO DOS ESCRITORES DE 2014

...

Ao desavisado leitor, isso é uma crônica esquizofrênica. Melhor explicar “isso”! O mundo acaba essa noite, deram-me a notícia ontem.

Como a pessoa organiza sua vida para desfecho tão dramático? Assim, engolido pela realidade do fato, dobrei o jornal. Deixei-o sobre a mesa e sai para o dia. Vai vendo... Meu mundo é pequeno: a mesa em desalinho é meu porto seguro. O texto segue, meu dia segue, o mundo acaba hoje!

O mundo sempre acaba em noite, já viram isso? Tudo se resume em uma noite escura, tenebrosamente eterna. Quando apertarem o botão “END”, Santelmo levará desaparecerá como boa ficção, parto prematuro que deu certo. Mas não quero falar de Santelmo.

Meu mundo é menor ainda que essa cidade. Menor que a de cabeça desses escritores, romancistas modernos, atores... Essa gente que insiste ver realidade em tudo que é impossível. Definitivamente, não quero falar de Santelmo. Santelmo é pequena demais para ser incluída nesse “fim”. No futuro, porque um mundo novo sempre surge depois de um fim bem acabado, Santelmo será figura quixotesca nos tais “romances de época”, seus imensos bulevares esvaziados em finais de semana igualmente vazios. O fim do mundo sequer vai reconhecer a existência dessa cidade. Santelmo, santelmo... Se continuar, acabo descrevendo em letras minúsculas essa cidade que sequer merece nome próprio. Farei pior, vou descrever e criar personagens crônicos... Recomeço de onde tinha parado quando ia explicar como acaba hoje o mundo.

O meu mundo é retangular, regular e tem ângulos retos suspensos a um metro e quarenta centímetros de altura sobre a mesa da cozinha. A geopolítica dos objetos dispostos sobre o tampão de vidro destaca as migalhas de pão do lado do pote de margarina. Tudo no seu devido lugar. O papel amassado que veio da padaria foi deixado porque cobria uma fatia de mussarela mordida. Borras de café no fundo das xícaras. Nesse inventário anacrônico constam duas xícaras esvaziadas de café amargo. Não usamos açúcar para adoçar nada em casa, dizem que isso previne o diabetes. A caneca cheia de leite está do lado esquerdo da faca de serra. Detesto acordar cedo, graças a Deus o mundo acaba hoje!

Se o mundo foi criado quando o verbo se fez carne ou, quando, antes, o autor dissera “haja luz”, o fim desse mundo só pode ser a sensação desconfortável de que tudo já fora dito e a impressão generalizada que o mundo chega ao fim. Felizmente existe um “antes” para cada conclusão.

O que veio antes mesmo antes? Ah! Sim... Fui convidado para o lançamento do romance Santelmo Hermana. A grotesca qualificação de “romance moderno” e a indefinida expressão “idade do romance” permitem vender o título como “romance de época”. Permite também diagramar a expressão “fim do mundo” em caixa alto, centralizado e em negrito. Enfim, relativizar mais uma vez o que me parece ser a entropia dos sentidos e não fim do mundo supostamente criado pela palavra. Pensar demais e escrever de menos, desdobrei a leitura até a exaustão clarividente da descoberta óbvia de que o nosso mundo está acabando, chegando ao fim por falta de autores.

A leitura nada revela. Antes, evidencia a entropia dos elementos constitutivos da matéria, do romance em desencanto. Ou, se preferem do desafio dos escritores e o fim do seu mundo.

Para os leitores desavisados, aqueles que esperavam encontrar aqui a hecatombe nuclear, um “Japão violento sobre nossas praias” - para não dizer tsunami! Ou a terra seca por falta d’água e imaginação... Para esses leitores, eu dizia, a melancolia dessa composição de aparência arbitrária deve soar mais caótica. É justamente esse o acabamento, se assim podemos comparar, o aborto de relativa espontaneidade. No fim do dia, espero encontrar formigas carregando as migalhas do pão... O fim anunciado será o breve espanar da toalha que cobre a verdade de ser a mesa o mundo perfeito. Toda dimensão é abstrata, a única certeza é que tudo acaba hoje.

E agora o fim, as pontas do laço no presente: por mais imperfeito destina-se à desfaçatez. E ao lixo.

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 12/03/2015
Código do texto: T5167496
Classificação de conteúdo: seguro