Fraseados

Fraseados






Começo "Fraseados" com uma pequena explicação. Para tanto lanço mão dessa imagem: um guitarrista. Agora, uma mínima pincelada musical sobre o conceito do jazz, naquilo que ele já teve de maior, o improviso. Desde sempre o público leigo julgava que as notas extraídas pelo guitarrista durante o improviso eram coisas ao léu, afinal ele estava improvisando. Qualquer nota serviria. Não, digo eu. O jazz é embalado por harmonias, algumas muito complicadas, sendo a mais fácil delas incompreensível para muito "tocador" de outras vertentes. Então, exemplificando, a harmonia, composta de um conjunto de acordes, "está" caminhando num ritmo 4x4, em andamento pouco além do moderado. Trecho da harmonia: Ré Maior com nona e sétima maior (D7+9), Si bemol diminuto (Bb 0), Lá menor com sétima (Am 7), Ré com sétima e nona menor (D7-9). Paramos aqui. Quatro acordes, só para exemplificar. A harmonia se estende além disso e não raro se desdobra em partes. Mas estamos falando só desses 4 acordes - eles estão em movimento, 1,2,3,4, cada um representa um conjunto de notas: D7+9/Bb0/Am7/D7-9. O que o guitarrista está fazendo quando esses acordes estão passando, apesar de ser um improviso, é ao mesmo tempo um jogo de cálculo combinado com agilidade mental, percepção&inteligência, experiência, momentum mais a emoção do mesmo, técnica de guitarra - e isso embute mundos e fundos, experiência e por fim, não significando por último - espírito.

Existem músicos que solam sobre harmonias que estão numa única tonalidade. Outro papo.

Numa harmonia standard de jazz isso praticamente não acontece. A coisa muda a cada xis segundos. A costura que o guitarrista faz ao deslizar pela harmonia pode ser chamada de fraseado.

Destaco alguns guitarristas cujo fraseado é, na minha opinião, digno de nota: Joe Pass, Jim Hall, Herb Hellis, Larry Carlton, Pat Metheny, norte americanos. Hélio Delmiro, Heraldo do Monte, Paulo Bellinati, Nelson Faria, brasileiros.

Nove nomes. Pode me vendar os olhos e colocar o LP na vitrola que o toque de cada um dispensa confusões. Acontece com outros instrumentos, ocorre agora tratarmos deste gênero de fraseado.

Gastei todo esse escopo verbal para falar de um livro: "Ensaios da Alma", do Escritor Celso Panza. Dono de um fraseado que deixa o aprendiz num prosaico dilema: ou bem rasgar todos os livros, atear fogo ao computador e jogar pela janela lápis e apontadores ou....respirar fundo e apreciar. A segunda opção mostra-se bem mais aprazível, senão salutar, ambas vivem no ambiente "estado de espírito" acompanhado do item maturidade. Sofre alterações com o tempo. Se há 20 anos atrás estivéssemos no Experimento RL navegando em vivência similar eu teria, irrefreavelmente, seguido pela opção número um. A idade reúne seus encantos.

Nem sofrendo de malária eu me atreveria a fazer uma resenha sobre "Ensaios da Alma". E para tanto, a fim de resumir uma questão facilmente solúvel lanço mão de um fraseado de domínio público, quase tão antigo quanto um pé de abacate: sapateiro, não vá além das suas chinelas. Por outro lado, posso tecer considerações neste espaço virtual, que até decreto em contrário me pertence, assim sendo aqui posso tudo, menos colocar figuras, digitar posso, ruminar convém, divagar urge, render justo elogio eleva o jogo.

Bom, a primeira coisa que me veio à mente, logo no início da aventura "Ensaios...." foi o lance do Fraseados. Precisamente, a maneira como o autor fraseia. Isso já havia me saltado a vista aqui no RL. Pensei eu: mas...., um mas que reverbera até hoje, enquanto coço o queixo.

Viver tem um tanto de comunicação, pra não dizer que tem um tanto de tudo, depende da dimensão multiplicada pela intenção, da circunstância e da soma das mesmas e suas sobreposições, há um conjunto harmônico em andamento e uma energia momentânea.

A cada xis segundos muda tudo.

"Ensaios da Alma" conta com 184 páginas. É divido em tópicos e o autor, acerca de cada um, insere uma harmonia e um solo.

Págs. 23 e 24 - A Ira e a Serenidade - "Ocorre a ira poder ser cura ao invés de daninha e agressiva e da serenidade ser covarde quando se aquieta aquele de quem se pede ação".

Págs. 27 e 28 - A Grandeza Humana - "A sinceridade como opção é irmã da honestidade e afasta a inveja que movimenta a sordidez humana".

Entre as aspas estão os fraseados.

Agora, de mãos dadas com o leitor vamos para outro lugar. Pense comigo que a média de tamanho dos seres humanos varia em torno de (estou chutando) 1,72 m. Em todo o planeta, e mesmo que um cão sarnento comece a ganir que na sua cidade viu um cara de 2,63 m ou um sagui histérico vitupere que na sua região natal esconde-se um sujeito de 42 cm, vamos concordar serem exceções os citados elementos. Portanto, para 7 bilhões de corpos sua média pouco foge aos 1,72 m, podendo-se assim afirmar a um estudioso extraterrestre que na Terra os habitantes possuem o mesmo tamanho com mínimas variações. E digo isso porque nesse trecho vou lançar mão de outro exemplo: os corpos celestes e suas dimensões. Arredondando os fatores, a Terra tem 3 vezes o tamanho da Lua, Júpiter, Saturno e Urano são 10 vezes maiores do que a Terra, e o Sol 100 vezes maior do que a Terra e 10 vezes maior do que Saturno, torna-se, por comparação, uma pulga se ao lado de Sirius, e Sirius se confrontada a grande Arcturus vira uma mosca, e Arcturus perto de Antares, uma ervilha...

Onde quero chegar? Ora, você não passeia pela África, pela América do Sul ou pela Europa e se depara com Euclides, do tamanho de um ônibus, então resvala em Gabriela, maior que o Empire States e no fim da rua divisa Aldous, do tamanho do Everest. Lembre-se, um 1,72 perfaz a nota imutável. Mas, as dimensões referentes a arte que cada um carrega dentro de si, isto sim, fica par e par com os astros.

Pág. 33 - Res Surgir - "Ninguém esconde seus defeitos dos aparelhados que sem pretenderem ver o menos enxergam mais".

Pág. 39 - Falta, Pecado, Palavra - "Na vontade presidida pelo discernimento o homem tem sua direção". "A única vontade nunca solidificada, nunca posta em exercício de forma institucional- estatal pelos governos, encabeçada pela Lei Moral foi a de Cristo".

Na obra "Ensaios da Alma" existe um fundo infinito multicor sobreposto por paisagens que se alternam como nuvens, ou flores, ou vales e céus, estão presentes e estão em movimento, dir-se-ia um caleidoscópio que faz passadas largas fingindo-se de velocidade quando um metrônomo iria atestar a batida de asas de um colibri. Tais cenários, dentre outros, expressam: bondade, inteligência, caráter, consciência, mágoa, saudade, A Mãe de Deus e O Cristo.

Não me dei ao trabalho de contar o número de capítulos, reitero que nossa crônica está catalogada como tal, e não como resenha. Resenha seria um atentado ao autor. Enquanto crônica, entro num planador e faço como os pelicanos e as gaivotas. A obra me transporta para os cimos e de lá diviso topografias. Dentro de cada uma delas correm cursos d'água.

São os fraseados.

Pag. 58 - A Mãe de Deus - "Negar não é bastante, a inteligência existe para demonstrar".

Charlie Parker desencarnou em 1955. Saxofonista. Até hoje, ninguém nunca conseguiu alcançar o seu desempenho. O nosso Victor Assis Brasil chegou muito perto. Considere que a cada ano, falando sobre esportes, recordes são batidos. Mark Spitz ganhou um mundaréu de medalhas em 72. Seus feitos foram ultrapassados. Apenas exemplos.

Nesse ponto, leitor, chegou a hora de te dizer até mais. Falamos de harmonia, de planetas, de estaturas, já esclareci um dos objetivos desta crônica, ou seja, nenhum além de, é claro, uma singela homenagem ao autor e sua obra, mas há ainda um porém escondido. Trata-se de um desabafo. Afinal, nunca a tive a chance de dizer para nenhum dos citados acima algo como: cara, valeu, impressionante como você toca! Arrasou!

Agora pelo menos posso dizer isso. Coisa de tiete mesmo, sabe? Quem nunca foi num show e no final sentiu vontade de apertar a mão do músico? Eu já. E aproveito pra dizer:

- Valeu, Celso, você toca muito!


(Imagem: Huguette Caland, disfarçado III, 2011, da série ′′Rocinante ′′, mídia mista sobre tela)
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 11/03/2015
Reeditado em 07/08/2020
Código do texto: T5166537
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.