A pena e o fuzil (O sono ou o samba)

O carnaval e o samba estão arraigados nos cromossomos Carioca. Tão ferrenhamente arraigados que – diria eu – ser impossível dissociar um do outro e em determinados momentos haver quem os confunda chamando samba de carnaval e carnaval de samba.

Há momentos, também, em que se observa a entrega do passista que desfila descalço, após ter a sandália arrebentada no “esquenta” e chega com os pés sangrando na Apoteose, O ritmista que igualmente sangra as mãos ao tirar a nota mais elevada do seu instrumento, a porta-bandeira que ensaia seu bailado e elegância o ano inteiro em frente ao espelho, o mestre-sala que a corteja e protege com a mesma elegância e dedicada aplicação aos ensaios e a escola.

Poderia falar de todos: a velha guarda – apesar da idade – em sua incansável presença em quadra, nos eventos e desfiles, as baianas, que além da beleza plástica de seu bailado, ainda assumem a cozinha da escola quando solicitadas. A comissão de frente, que a cada ano chama a atenção para as novidades coreografadas apresentadas. A harmonia, que dá show de organização e ordem. O mestre de bateria, o coração da escola; mas faltaria espaço e tempo para descrever tamanhos amores e dedicação.

E hoje gostaria de falar sobre outra personagem do carnaval que nas crônicas vespertinas dos diários cariocas, sempre é esquecida (ou quando lembrada merece pequeno destaque, uma ou duas linhas apenas), que desfila em uma ala escondida no final do desfile próximo a ala da velha guarda, cuja passagem e quesito não rende pontos nem glória à escola: o compositor.

O compositor não sangra o pés nem as mãos, o máximo que consegue são alguns calos nos dedos de tanto escrever com sua pena. Não precisa ensaiar seu texto em frente ao espelho, até por que seu trabalho é feito nos bastidores. Quando ninguém pensa em carnaval, em folia, quando todos estão em suas casas e trabalhos, ao longo do ano, o compositor trabalha, se dedica, pesquisa, escreve, rascunha, rasga, escreve de novo, canta sozinho no meio da rua, no trabalho, no ônibus – os transeuntes lhe riem na cara e o apontam achando-o um doidivanas – interrompe a fala da mulher amada para anotar uma frase, uma rima, cantarolar uma melodia, perde o sono no meio da noite, e perambula pela casa feito fantasma, pois é o sono ou o samba. E o sono pode perder-se, não faltarão tempo e cama para se dormir, e um samba perdido, nunca será recuperado. Jamais!

Há uma força que o move para a composição e para o concurso para escolha de sambas enredos. Ninguém pede ou o obriga a nada, ele compõe por que quer, por prazer, ou melhor, por necessidade vital – também não poderia ser de outra forma: Como viver sem o ar que se respira? Como atravessar o deserto sem a água senhora da vida?

Se endivida para gravar o samba, pede emprestado para “rodar” os folhetos, chama os amigos, perturba os vizinhos para que o apoiem no “samba”.

E lá vai ele atrás de patrocínio!

E contrata um “canário” a altura de sua obra!

E aquele violão aonde encontro? E o cavaco?

É ali, na quadra da sua adorada escola, o lugar em que ele se sente bem, onde afloram suas inspirações e motivações, aonde sua pena pode ser posta a prova e a disposição, a serviço da sua adorada escola tal qual o fuzil do soldado que é convocado para a guerra.

E esta guerra é árdua e sangrenta, trabalha-se duro, dia a dia, noite a noite, madrugada adentro, a semana toda. Trabalho este que vai culminar em apenas uma rápida e fugaz apresentação semanal.

E o “canário” atrasa, diz que está chegando, não atende ao telefone. E o samba foi sorteado para ser o primeiro a se apresentar. Se o “canário” chega no horário, tem que se “passar” o samba, para saber se estão todos ensaiados e afinados.

Se o “canário” atrasa ou não aparece é necessário improvisar alguém da parceria que saiba cantar, que tenha afinação para não ser desclassificado por não se apresentar.

E começa a disputa... E os dedos ficam sem unhas, os cigarros acabam em minutos, os sapatos se desgastam de tanto que se anda para lá e para cá, até que se divulguem os sambas que continuarão na disputa.

Para o compositor o pior que pode acontecer é lhe ser cerceado do direito de disputar o concurso de sambas-enredo em sua escola preferida, aquela que bate mais forte em seu coração, seja por derrota, seja por algum outro motivo; é como fosse um exílio dentro de casa, um desterro na Ilha de Elba, tal como foi desterrado Napoleão, tal como foi exilado Manoel Bandeira chorando saudades de suas palmeiras e sabiás ou Caetano Veloso que não conseguia ver beleza na sua London, London e Gilberto Gil enviando aquele abraço fraterno e saudoso a todo o Rio de Janeiro.

Se vem a vitória, ele considera-se realizado: não fez nada além de sua obrigação. Se vem a derrota ele xinga, esbraveja, reclama, muitas vezes chora, se irrita, ameaça não pisar na escola novamente, fala o que deve e o que não deve, se sente perseguido e injustiçado, olha o presidente e os diretores de um jeito um tanto quanto atravessado, desaparece da escola por dias, semanas, até passar a dor de ver sua obra preterida.

Mas quem no calor da batalha, nunca proferiu impropérios ou frases insanas, construídas não no cérebro, senhor da razão, mas sim, no coração, senhor das paixões e das frases mal pensadas (engendradas)?

Quem na hora do combate consegue fazer poesia?

Fosse assim Drummond seria general.

Duque de Caxias seria poeta.

E o compositor não é um ser humano diferente senhores, a poesia vem-lhe em plácidos campos e calmas pradarias.

No campo de batalha só lhe é permitido guerrear.

E guerrear é paixão,

Guerrear é sangrar os pés e mãos,

Guerrear é fazer da pena fuzil,

Logo, se lhe é vedado ter paixão,

Se lhe é vedado ferver o sangue ao compor o melhor para sua adorada;

Se lhe é vedado sentir o coração bater mais forte ao chegar ao portão da casa da sua adorada;

Melhor seria aposentar a pena;

Curar os calos dos dedos;

Dedicar a atenção que a mulher amada merece;

E finalmente, colocar o sono em dia!

Klem Machado 07/08/2014

Klem Machado
Enviado por Klem Machado em 11/03/2015
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