A Carta
E, aqui da praia, que tem a areia estreita da calçada ao mar, onde meus pés estão afundados, esperando, sentado em uma cadeira velhinha já, de náilon puído, dos anos 30 – 2030 tá?! Quando ainda encontrávamos dessas cadeiras de praia - que a água venha, fazendo barulho, ora... de água ué, isso ainda não mudou... e molhe minhas canelas sujas de raspinhas de conchinhas de mariscos, que escrevo uma carta. Meu bis netinho, Fernandinho, piazinho curioso, linguarudo, perguntador, ao mesmo tempo em que constrói seu imaginário “coluntrampê” - ah... é um troço aqui desta época, quem sabe um dia vocês conheçam, já que os castelos imponentes e nobres fortalezas não existem mais – indaga sem desviar os olhos de sua criação de areia molhada, concentrado.
É uma esferográfica e um papel, moleque... Os olhos, ora atentos à sua, então, criação, a abandonam momentaneamente, e me olham confusos por baixo da sombra da aba do bonezinho herdado de meu neto, seu pai... ele tem uma arvorezinha verde bordada nele.
Ah... Serve... Ops! Servia para quando queríamos nos comunicar, receber ou mandar notícias às pessoas distantes de nós. Ele finalmente abandona sua obra, apoia seus bracinhos magrinhos em meus joelhos, e, com algum receio, aproxima lentamente uma de suas mãozinhas pra pegar...
Esferoquê?
Esferográfica moleque! Então Fernandinho a pega, sujando-a um pouquinho de “cremonese” – uma espécie de protetor solar fator 500 que ainda nos permite ir à praia nos dias de hoje – e sem piscar, encantado, suspiroso, quer experimentar, mas papéis são artigos de “luxo” e quase impossíveis de se encontrar por aí, já que não servem mais pra quase nada.
Devolva-me moleque, receoso, pois a tinta azul que mancha o tubinho interior parece já estar abaixo da metade, a tampinha, que possuía aquela pontinha que servia pra prender nos bolsos da camisa, eu acho, se quebrou, mas ainda serve pra proteger a valiosa ponta dessa rara esferográfica. E ele, sem culpa nenhuma de não conhecer sua verdadeira essência, e tampouco culpa por algo que nós mesmos insistimos em fazer, me devolve com carinha de “eu quero uma”. Afinal ainda falta o ponto final na carta que acabo de escrever – Só não existe mais os Correios pra que eu possa mandar - que diz:
Por que tantas teorias eletrônicas foram criadas? Por que inventamos, criamos e cultivamos monstros, dos quais não soubemos dar o devido e correto tratamento? Internet... E-mails... Grandes Redes Sociais... Eteceteras... Arquivos gigantescos o tempo todo à nossa disposição, que podíamos usar onde e quando quiséssemos, só não soubemos, em nossa própria criação, o momento de se deixar de lado de vez em quando, que era simples como fechar uma caneta com a tampa, um simples clique. Com isso, a originalidade virou fotocópia, e nada mais é novidade pela falta de controle do ponto em que aquilo surgiu, as janelas de nossas casas não precisavam mais de vidros ou cortinas, pois tivemos a nossa disposição uma janela, supostamente, muito melhor, que nos permitia obter conhecimento, ser bonitos, altos, fortes, ser homem ou mulher, pudemos ser presidentes, populares, em ambientes sem qualquer tipo de Lei. Nossas fantasias e maluquices finalmente foram sanadas sem dor, sem pena, a saudade ficou de lado, o gosto verdadeiro do frango assado também. No final das contas, uma esmagada minoria, convicta, e sem o poder do teletransporte, introduzida à força por questões de sobrevivência ao eletrônico, porém abnegada ao andar desta carruagem poderia ter sido o equilíbrio, em uma época onde puxávamos da tomada da parede tudo, a torradeira, o micro-ondas, a televisão, o rádio, o aspirador, mas jamais os computadores, que permaneciam constantemente ligados entre si, alimentando, não um bicho papão - pois a ferramenta em si era benéfica, foi a falta de controle e doença das pessoas que nos trouxe aqui - mas um fenômeno de duas caras: Encantada, aquela com infinitas possibilidades que todo esse emaranhado podia nos dar e nos deu, fossem coisa boas ou ruins. Simples, como uma engrenagem, ou um livro que podíamos fechar quando simplesmente cansávamos de ler, que a história não teria mudado ao abrirmos novamente na mesma página.
Não era preciso ser diferenciadamente inteligente pra saber disso, que as coisas caminhariam pra isso. E muito menos ficar sem ir à praia ou tomar sol por semanas e semanas, por medo de tirar a cara da frente da tela de um maldito celular.