Do desamor
Resolveu escrever para que aquelas coisas que vinha pensando -e sentindo, e temendo-, se que havia alguma diferenciação ou separação entre elas-, pudessem, talvez, ser exorcizadas como demônios, que estavam ocupando um lugar que não lhes era devido. Tinha uma ideia meio louca na cabeça, que se escrevesse sobre algo que tinha algum potencial para acontecer esse "algo" perderia sua força no mundo "real" e não se consolidaria num fato, de fato. Redundante sim. Redundante, como a vida, que tinha desses patéticos exageros. Na verdade, flertava com a repetição. Lhe tinha gosto. Gostava de exageros, de dramas, dessas coisas que beiravam o desespero, da falta de limites, da liberdade inadequada de ir até o fim. Quanta bobagem, pensou! Foda-se, era o que sua mão e sua mente -seu coração- queriam dizer. Pois que dissessem. Pois que desabafassem. Pois que vomitassem o que estavam cansados de sentir.
Não sabia ser precisa, ou exata, ou prática, ou sabe-se lá qual adjetivo poeria melhor denominar aquilo que queria dizer. Sucinta, talvez. Teve dúvidas. Abriu uma nova guia e pesquisou rapidamente no google, para não correr o risco de estar escrevendo algo que poderia ficar documentado como uma grande bobagem. Um ato de profunda ignorância mesmo e atestado de inferioridade intelectual. Foda-se a intelectualidade, pensou. Odiava os intelectuais e tudo o que eles queriam parecer. E toda superioridade que queriam exibir por aí, do alto de seus pedestais de sobre-humanos. Não sabia se essa colocação existia. Nem queria saber. Voltou ao sucinta, que fazia sim algum sentido dentro do contexto que gostaria de exprimir. Não conseguia ser uma pessoa de poucas palavras. Gostava da repetição e faria uso dela o quanto quisesse. Talvez mesmo para se convencer, mas isso tanto fazia. Tanto fez e tanto faz. O importante era dizer o que queria ser dito.
Colocaria aquela história no papel e jogaria a fora depois. Mesmo que não jogasse na lixeira de fato. Mas iria se despedir dela, como quem permite a alguém partir para sempre de sua vida. Sem ressentimentos. Sem magoas. Sem pesos desnecessários. Já tinha pesado tanto, só não queria que pesasse mais. Para isso era preciso fazer todo processo de exorcismo passo a passo. Essa porcaria de nova ortografia havia embaralhado o resto do que sabia de gramática, pensou entre revoltada e envergonhada. Mas, de fato, não queria se preocupar com essas "pequenas" coisas agora. Preocupada estava mesmo com o ritual. Se soubesse latim iria escrever palavra por palavra, formar frase por frase no mais perfeito e eficiente latim. Tinha certeza que assim todos os demônios iriam embora para nunca mais voltar. Tinha aprendido nos filmes. Funcionava. Ao não ser em alguns casos, mas isso não vinha ao caso.
Olhou ao redor. Ele estava lá, absorto em suas ideias, os olhos fixos na tela do computador. Não tinha certeza se ele trabalhava ou passeava por alguma de suas redes sociais. Há tempos isso deixara de fazer importância. Não porque deixara de ser uma pessoa paranoica e dominadora, mas pura e simplesmente porque não importava mais. Não importava e isso era triste. Não importava e se sentia culpada. Não importava e lhe trazia uma pesada sensação de estar errada. De as coisas estarem erradas, não sabia bem. Como uma nuvem negra que pairava sobre sua cabeça todos os dias, só pela hora derradeira de o primeiro pingo de chuva cair e dar início a tempestade. Tempestade essa de onde ambos sairiam machucados, destroçados no final. E não era o que queria. Não era o que queria. mas não sabia mais o que fazer. Não tinha mais o que fazer.
Já tinha tentado tantas vezes. Já tinha lutado até não existirem mais forças, por aquela relação. Com a esperança que as coisas se "ajeitassem". Que ele entendesse suas demandas. Que ele percebesse que as vezes que reclamava e lamentava que as coisas não iam bem, não iam de fato e não era algo apenas dito da boca pra fora. Mas ele, como sempre, não lhe dava ouvidos, naquela filosofia de que logo sua fúria ou tristeza passariam e tudo voltaria ao "normal". Como se o normal fosse um lugar bom de estarem... Ele sempre sempre achou que "cão que ladra não morde". E, sim, esse não deixava de ser um de seus problemas. Embora não fosse um cão, era típico dela falar, falar e não agir; prometer, prometer e não cumprir. E ele, mais do que cansado, já estava acostumado com isso. E justamente por estar acostumado não ligava a mínima, como quem se quer escuta o que o outro diz. Ele não escutava, ela continuava a dizer. Continuava até continuar dizendo não mudava mais nada. E não mudava faz tempo. E já havia passado do momento de agir. Agora não restava mais nada.
Continuou escrevendo e entre uma frase e outra o observava. Pensou que deveria sentir vontade de chorar. Não sentia a mínima. Há tempos não sentia vontade de choro ou riso- ao lado dele. Há tempos vinha tentando reprimir a falta de vontade de continuar vivendo- ao lado dele; Há tempos vinha fingindo que a vida ainda lhe oferecia possibilidades honestas de continuar vivendo com entusiasmo- ao lado dele. Há tempos vinha mentindo ou tentando omitir de si mesma, o que não podia mais negar. Há tempos não tinha mais tempo ou energia alguma para continuar a fingir.
Escreveu as últimas linhas do final e suspirou profundamente, esperançosa que as coisas então pudessem mudar. E, talvez, voltar a ser algo parecido com o que era antes, quando ela lhe tinha desejo, lhe tinha estima, lhe tinha amor. Talvez, antes, que colocasse o último ponto, da última linha, do último texto, da última frase do desamor, os demônios pudessem ser todos exorcizados de uma vez. E, talvez, pudessem não voltar nunca mais a assombrá-la. Ou tudo não passaria de mais uma ilusão.