A JARDINEIRA E A MARIA FUMAÇA
- Maldição, lá tá vindo o trem!
Reviver as boas, e às vezes, as não tão boas coisas que passei é um exercício salutar que pratico constantemente. Esse processo normalmente tem um start em alguma coisa que instantaneamente vejo ou escuto. Por exemplo, o apito do trem exerce esse fascínio em mim, e assim eu viajo no tempo nos trilhos da imaginação. Hoje vou navegar por sonhos mil num episódio que aconteceu; Estive nele; Na época, por ser ainda de fraldas, estava no colo de minha mãe, desta forma dele tenho pouca recordação. Para recordar melhor tentei fazer regressão e outras coisas que me sugeriram, mas não consegui ter uma boa resolução do fato. Perguntei então ao meu pai, e ele me contou em riqueza de detalhes, por isso tomo a liberdade de descrever tal qual ele me relatou.
Eu deveria ter quase dois anos e disputava ferrenhamente, com minha mana, o colo de minha mãe.
Naquele tempo maravilhoso, a locomoção de nosso esqueleto, de uma cidade a outra, era feita por uma moderníssima jardineira.
Cada jardineira, além do motorista tinha o cobrador que, entre muitas funções, era a de colocar e retirar malas, porcos, galinhas, sacos, caixão de defunto e outros apetrechos do bagageiro que ficava, do lado de fora, por cima do teto do veículo, e, para segurança dos passageiros, descer da jardineira para sinalizar que a passagem de nível estava livre.
Chovia a cântaro.
Eu, minha mana e meus pais estávamos realizando uma viagem radical por uma estrada lamacenta. Nas subidas os homens desciam para empurrar a jardineira e nas descidas, feito uma rampera no cio, ela rebolava de um lado ao outro na estrada.
O motorista meteu o pé no freio, mas a filha de uma puta da jabiraca não parou, e toda descontrolada foi deslizando, deslizando, até parar quase nos trilhos, além do limite considerado seguro.
Os passageiros se alvoroçaram feito pássaros em gaiola derrubada.
As nuvens cuspiam água sem parar.
O cobrador desceu com uma capa na cabeça para não ficar tão encharcado, e já, por cima dos trilhos, fazendo uma concha acústica com as mãos na orelha, ouviu o apito rouco da Maria fumaça que vinha engolindo trilhos e vomitando fagulhas por onde passava.
O cobrador desesperado não sabia se sinalizava para o maquinista ou gritava para o motorista.
A água da chuva veio se misturar a urina e as merdas que escorriam pelas suas pernas.
Por fim soltou a voz.
- Para trás! Para trás! Gritou aflito, completamente desvairado, o infeliz todo molhado para o motorista. Maldição, lá tá vindo o trem!
O motorista ,quando se deu conta da merda que iria acontecer, emporcalhou o banco.
Apavorado tentou, numa patinação terrível da jardineira, retirar a parte dianteira que avançava nos trilhos. Não estava conseguindo.
E a Maria Fumaça vinha fumegante, cansada, nervosa e arrotando um apito rouco, gritava:
- Saia da frente sua jardineira vagabunda, incompetente!
O motorista fez o sinal da cruz, clamando aos céus por ajuda, e pediu para que todos se segurassem.
O povo, em desmaio, gritava desesperado no bojo da jabiraca. Alguns tentando pular pela janela e outros, em lamúria, entregando a alma a Deus.
Num milagroso e último esforço o motorista agoniado conseguiu que a jardineira recuasse alguns centímetros; Isto foi o suficiente para que não se transformasse numa merda maior.
A Maria Fumaça chegou, e sem piedade, toda senhora de si, arrancou o para-choque da pobre jardineira, e a cada vagão que passava dava uma atritada dilacerando a lataria.
E a cada carinho do trem na jardineira o povo gritava em desespero.
Meu pai não contou o resto, mas imagino que os passageiros tiveram que sair rápido dali, a um lugar adequado, para trocar as cuecas e calcinhas, e lavar por dentro a jardineira toda emporcalhada para então seguir viagem.