CERTA NOITE

Certa noite, dormi mais cedo. Dormi dado tempo, profundamente. Depois, acordei de madrugada. Tentei dormir de novo, mas não consegui. Coisa chata é acordar no meio da noite após ter gasto todo o sono. Ainda deitado, começo a pensar, talvez tentando me lembrar de algum sonho que a minha alma vivenciou, enquanto esteve ausente do meu corpo naquelas horas de seu repouso. Inútil. Decerto sonhei, mas não me lembro, pelo menos por enquanto. Quando isso ocorre, de não me lembrar, assim que desperto, de algum sonho, não adianta eu vasculhar no recôndito da consciência, porque, quase sempre, só com um ou dois dias depois é que as imagens reaparecem repentinamente como recordações oníricas.

O que faço, então, após a insônia apoderar-se de mim? Se ao menos a minha amada estivesse ao meu lado, poderia consolar-me com os seus carinhos; poderíamos fazer um amor delicioso sobre a cama ainda quente em meio ao silêncio característico da madrugada doméstica. E o meu tempo de falta de sono, seria preenchido compartilhando harmoniosos momentos amorosos com a minha amada. Mas ela não está do meu lado. Moramos em cidades diferentes. Estamos noivos. Em breve, vamos nos casar. Entrementes, para meu conforto afetivo, sinto-a todo tempo, espiritualmente, junto de mim.

A cama foi esfriando, como a fria madrugada. Não sentia mais vontade de ficar deitado. Decido levantar-me. Ao abrir a porta do quarto, o meu gato saúda-me com estridentes miados. Como bem o conheço, já sei o que ele quer. Vou direto olhar o seu pratinho de comida. Como previa, está vazio, sem ração. Ele continua miando, roçando-me nas pernas. Deve estar estranhando a minha presença naquelas horas tardias da noite. Corre para o armário e suspende as patas dianteiras, apoiando-as perto do local onde sabe que guardo o seu proveitoso alimento. Então, num gesto habitual, pego a ração, guardada numa pequena vasilha plástica, retiro a tampa e despejo um pouco para ele comê-la. E fiquei ali, por alguns instantes, olhando-o alimentar-se com muito apetite.

Pensei até em tomar um café simples, mas desisti. Preferi esperar umas três ou quatro horas, quando então, após o dia amanhecido, poderia desfrutar do tradicional café da manhã. Quando abri a porta do fundo da casa, a brisa fresca da noite gerou-me uma sensação de bem-estar interior. Geralmente, esses momentos silenciosos são especiais para o artista que almeja sentir o sopro inspirador, impelindo-o a pintar, a esculpir, a escrever, a exercer qualquer arte que lhe seja peculiar.

E foi assim que me senti: como um artista impelido a escrever, naquelas horas insones em plena madrugada. Mas escrever o quê? Ora, acerca de qualquer assunto que a veia de escritor me sugerisse naquele momento, oferecendo-me ocupação literária que sempre me dá tamanha satisfação íntima. Porque, na verdade, para quem tem o hábito de exercer qualquer arte, sobretudo, por necessidade espontânea do espírito, cada pequeno instante é relevante, visto que, pode brotar da essência criadora, o detalhe ainda latente, que vai ganhando forma artesanal, até materializar-se como obra acabada pelo artista que, de modo autêntico, a realizou.

A aragem noturna chegava agora mais fria. Vinha da mata atlântica, que dormia sombria ao longe, depois do perímetro urbano. A densa neblina inibia a iluminação artificial, ocultando parcialmente as edificações. E, embora a lua já não estivesse mais ostentando o seu fulgor celestial, algumas poucas estrelas piscavam sempre altivas, mediante as suas luminosidades naturais, revelando a presença eterna de Deus na beleza das maravilhas astrais.

O meu gato reapareceu na área de serviço onde eu me achava. Olhou-me com um jeito tranquilo. Tão diferente daquele animal inquieto que, há instante atrás, me falava em miados repetidos que estava com fome. Éramos ali, dois companheiros domésticos acordados, desfrutando da plenitude daquela madrugada. De súbito, ele ouviu um miado de alguma gata no cio. De um pulo, subiu no muro, limítrofe entre a minha casa e a casa do vizinho. Bem atento, olhou pra um lado, pra outro; movimentou as orelhas; aguçou os ouvidos; depois saiu devagar, andando com passos lentos sobre as telhas, perscrutando o ambiente que o cercava. Como que a sentir no vento o cheiro sedutor da fêmea, que o chamava em amorosos miados, avançou mais um pouco e logo a encontrou toda melosa, se mostrando pra ele em gestos sensuais; outro gato tentou se aproximar dela, mas não obteve êxito, indo logo embora, já que ela estava louca pra cruzar com o meu gato. E o namoro entre os amantes noturnos começou, numa sequência festiva de meneios e miados carinhosos que caracterizam os gatos no cio.

Os cães são despudorados quando estão no cio. Qualquer pessoa pode ver um casal de cães no meio da rua acasalando à luz do dia. Mas os gatos, não. Eles são cheios de pudor. Quando estão no cio, procuram os becos, os telhados, os locais escuros ou na penumbra pra acasalarem, geralmente à noite. Eu mesmo, jamais tinha visto uma cena tão íntima e completa de namoro entre um casal de gatos. E aqui vale salientar, que sempre tive essa curiosidade. Por fim, como observador ponderado e ao mesmo tempo curioso, ante aquela ação inédita para mim, após algum tempo, percebi que o meu gato se afastou um pouco dela, como a se preparar pra cena final de amor prestes a se realizar. Foi aí que, ele deitou-se sobre as telhas, se abriu todo de barriga pra cima (não sabia que o macho ficava por baixo e a fêmea por cima; consistindo no modo básico de cruzamento deles); e logo ela veio, ajeitando-se sobre ele, também se abrindo toda, num íntimo momento de doação amorosa recíproca; e o casal de gatos, no frio da madrugada, se entregou plenamente num instintivo amor.

Olhei o relógio do celular. Eram quatro horas da amanhã. Um resto de noite persistia em escurecer o céu. Vi que ainda podia usufruir de mais duas ou três horas de sono, interrompido às duas da madrugada. Assim, em qualquer instante existencial (como este, do escritor/cronista), brota quase sempre da alma do artista, a autêntica obra de arte.

Adilson Fontoura
Enviado por Adilson Fontoura em 08/03/2015
Reeditado em 14/05/2017
Código do texto: T5162559
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