MEU CRAVO

Em uma tarde triste e comum como qualquer outra da minha infância, e no retorno da escola, senti um perfume leve e diferente no ar, e olhando ao redor, eu o encontrei.

Um cravo.

Apareceu como por encanto, bem ali, escondidinho entre duas enormes raízes de um grande e ressequido tronco de árvore.

Tão franzino solitário e frágil quanto eu.

Naquele momento havia outras crianças ao meu redor, e por instinto de preservação ao precioso cravo, disfarcei e passei ao largo.

Não consegui ficar longe dele por muito tempo e tão logo à noite “caiu”, eu o procurei e o reencontrei. A partir daquele dia ele seria o meu cravo.

Parecia ter ficado feliz com a minha presença, tive a impressão de que suas pétalas avermelhadas e aveludadas se abriram um pouco mais ao final do nosso encontro. Somente afaguei suas pétalas suavemente e deixei que sentisse que a partir daquele dia não estaria mais sozinho... nem eu.

Assim foi minha rotina durante meses seguintes.

Mal tocava o sino da escola anunciando a saída e eu disparava portão afora, para instantes depois ficar Junto dele.

Nunca falei do meu cravo para ninguém. Tinha medo que o tirassem de mim. Eles não compreenderiam o porquê eu precisava tanto dele exatamente ali, naquele caminho por onde eu passava todos os dias.

Eu e ele, somente nós dois sabíamos que ele precisava de mim para não morrer... e eu precisava dele para continuar vivendo.

Todas as crianças da escola que eu conhecia, gostavam de arrancar as flores da beira da estrada para ofertar para suas professoras, quando não, as pisoteavam por pura malvadeza. Eu não deixaria isso acontecer com o meu cravo.

Passei a cuidar, secretamente, e com dedicação e carinho daquela bela flor.

Em cada encontro limpava seu canteirinho com as pontas dos meus dedinhos magros de menina. Costumava levar sempre um copinho plástico, que mantinha escondido nas pontas dobradas do meu surrado vestido, com o qual eu retirava pequena porção de água do ribeirinho ali próximo para matar a sede da minha amada flor.

E para minha alegria meu cravo foi crescendo e se firmando naquela terrinha frouxa e poeirenta cada dia mais. Era lindo o meu cravo!

Não era fácil manter em segredo sua existência. Eu tinha pesadelos constantes, onde via dezenas de crianças malvadas descobrindo o esconderijo do meu pequeno cravinho e o pisoteando furiosamente, até fazer escorrer de suas “petalazinhas” delicadas toda a sua bela cor avermelhada, que no meu desespero de menina, parecia um sangue mais vivo do que o sangue que escorria da ferida aberta na perna do meu paizinho , nos seus últimos dias de vida.

Nesses dias de pesadelo eu acordava em sobressalto no meio da noite e desabalava uma ensandecida carreira rumo ao meu “protegido “e só respirava aliviada quando finalmente meus olhinhos apertados de sono o visualizavam, lá no mesmo lugarzinho, entre as raízes daquele tronco de árvore. Então retornava para casa e adormecia aliviada.

Assim, ao lado do meu cravo, seguiram-se muitos dias da minha juventude, entre as alegrias, que algumas boas almas semeiam nas beiras das estradas e as tristezas que se vai colhendo ao longo de toda uma jornada.

Nessa época morava com minha mãe e mais 8 irmãos, todos menores que eu , meu pai havia falecido, ainda muito jovem, de uma doença estranha, uma ferida que surgiu na sua perna esquerda, e sangrava permanentemente, doença que os médicos não conseguiram conter e que o corroeu até a morte.

Naquela pequena e humilde casinha de madeira sem janelas e de chão de terra batida, localizada numa comunidade muito pobre da periferia de São Paulo, na verdade “uma favela”, passei boa parte da minha infância. Subindo e descendo o morro para ir à escola e para buscar água na “mina”. Foram dias difíceis, que ao relembrar, enchem ainda de lágrimas meu “coração”.

Assim chegou mais uma estação de chuvas. E ela veio brava, persistente, amedrontadora. Foram dias cheios de solidão e tristeza.

As horas não passavam, os dias tornavam-se longos e tediosos demais e quase sempre algum novo incidente impedia uma visita mais demorada ao meu cravo, ora era um dos irmãos menores que ficava mais adoentado nesse período, ora era a mamãe que chegava mais tarde do trabalho do que de costume, por causa do trânsito ocasionado pelos extensos alagamentos, próprio desses períodos chuvosos e agravado pelo eterno descaso do Poder Público.

Sentia falta das longas horas sentada ao lado do meu cravo contando e imaginando suas histórias.

Apesar dos dias sempre chuvosos e caminhos alagados e perigosos, não deixei de ir vê-lo um dia sequer, mesmo que por alguns segundos, e ele estava sempre lá a me esperar, todo molhado da chuva, resistindo ás intempéries como um bravo cravo guerreiro.

Lembro-me como hoje, naquele dia o céu estava mais escuro e mais carregado do que de costume. Grossas e ameaçadoras nuvens pareciam ter pressa em se aliviar do imenso peso que carregavam.

Raios entrecortavam os céus e trovões ribombavam assustadores sobre nosso pequeno vilarejo. O céu estava prestes a desabar em forma de água... e no início da tarde ele desabou.

E foi o dia mais terrível da minha vida.

Eu e meus irmãos, todos pequenos ainda, estávamos sozinhos em casa, pois mamãe ainda não havia retornado do trabalho. Estávamos todos assustados com o barulho imenso da chuva batendo forte no telhado, íamos de lá para cá, tentando encontrar algum cantinho que ainda não estivesse todo molhado, pois as telhas já se afastavam em alguns lugares do teto devido à violência da tempestade. O pequeno casebre tremia ao ritmo violento da tempestade. Tudo ia desabar a qualquer momento.

Meu mundo ia desabar.

Os menores choravam apavorados gritando por mamãe, enquanto os maiores seguravam firme o lençol da janela já encharcado pela água abundante que teimava em escorrer pelo vão aberto da “janela”.

Eu, menina franzina ainda, apertava forte a caçula em meus braços e entre lágrimas de medo e tristeza, vendo que nossos pequenos esforços já não valiam mais nada para conter a tragédia que se anunciava, apenas comecei a rezar em voz alta e como que entendendo a gravidade do momento, todos os meus irmãos, se deram as pequenas mãozinhas e rezamos juntos e fervorosamente para que mamãe chegasse... para que a tempestade passasse.

Fechamos nossos olhos e rezamos como nunca havíamos feito antes... e mamãe chegou, encharcada até os ossos e ligeira como só uma mãe é capaz de ser nessas ocasiões, pegou dois dos pequenos nos braços e o restante arrastou pelas mãos, tropeçando e afastando alguns poucos móveis com os pés e com o corpo, nos retirou dali momentos antes de olharmos para trás a tempo de presenciar o telhado todo vindo abaixo e as lascas das madeiras voando para todas as direções.

Logo chegou mais ajuda da vizinhança e fomos todos levados para um lugar próximo e seguro.

Um lugar, onde ficaríamos a salvo e protegidos de qualquer perigo.

Perigo...perigo...perigo, essa palavra explodiu repentinamente dentro do meu dolorido cérebro e lembrei do meu cravo. Não esperei mais um segundo, nem me importei mais que todos pudessem ver para onde eu estava correndo, meu cravo estava em perigo e eu precisava salvá-lo.

O caminho até o tronco da árvore parecia não chegar nunca, embora fosse próximo da casa onde estávamos abrigados. Nem percebi que mamãe corria atrás de mim , ainda sob a chuva gelada, sem entender nada.

Patinava na lama, tropeçava, caia, levantava e corria tanto quanto minhas perninhas finas aguentavam e em poucos minutos, que mais pareciam uma eternidade, cheguei.

O tronco da árvore, que durante tanto tempo foi o refúgio seguro do meu cravo, estava tombado, arrancado com raízes e tudo do solo, pela força das águas.

E o meu cravo? Cadê o meu cravo? Gritei, chorei e depois fiquei ali ao lado daquele tronco inerte, com a chuva ainda escorrendo pelo meu corpo franzino, remexendo na lama ao redor e rezando novamente, como se fosse possível mais um milagre acontecer naquele dia...mas o milagre não aconteceu. Ele se foi da minha vida para sempre.

A febre veio forte tão logo mamãe me retirou da chuva e me abrigou em seus braços. Adormeci, desmaiei... não sei.

Sonhei que a chuva havia transportado em suas águas barrentas o meu cravo para bem longe, para um lugar novo, uma nova beira de estrada, e o havia depositado carinhosamente entre as raízes de uma nova árvore, para que ao amanhecer uma outra menina sozinha e triste, pudesse se alegrar com a sua beleza e perfume e esquecer por um determinado tempo as misérias e o abandono à que são submetidas tantas crianças moradoras dos becos das vida e das favelas desse mundo. Crianças sonhadoras, assim como eu.