POLTRÃO*: Uma história de "coragem".

Poltrão Pires era um sujeito incomum. A começar pelo nome que seus pais tirara de um filme no qual o personagem principal chamava-se Paul Train (Pronuncia-se Pol T´reain). Eles eram semianalfabetos, ao registrá-lo, entregaram ao escrivão do cartório o nome escrito em um papel da seguinte forma: “Poltran Pires”.

Entre outras esquisitices que já registrara, talvez aquela fosse só mais uma, pensou o escrivão, por isso perguntou:

— Têm certeza que é isso que vocês querem?

— “Temu sim, pode pô”.

E assim surgiu Poltran Pires, hoje mais conhecido como Poltrão, graças ao que veio a ser sua índole, assim convenientemente apelidado por seus amigos.

Poltrão desde criança já se mostrava um completo covarde e embromador. Nunca dormiu sem, pelo menos, um abajur ligado, mas isto só depois de um intenso tratamento para perder o medo de ter pesadelos. Somente depois disso é que passou a dormir todas as noites, pois também estava ficando cada vez mais difícil para ele conseguir uma companhia para todas as noites.

Para toda sua “bananisse” ele sempre tinha uma desculpa eficaz. Na infância e na adolescência quando era desafiado por outro colega na escola ou na rua, dizia:

— Minha religião não permite.

Ou:

— É que eu estou com dor de barriga.

Algumas vezes, devido a sua ingenuidade e ao seu isolamento em razão de medo de outras pessoas, passava por sustos reveladores. Certa vez, quando estava próximo da puberdade, acidentalmente viu uma jovem fazendo sua necessidade fisiológica n°1 e reparou que nela estava faltando algo que nele ainda não faltava, mas que também, na mesma região, ela possuía algo que ele não tinha e, por conta do que faltava, a jovem tinha que sentar no vaso para tal necessidade, o que deixou Poltrão receoso. Chegando na puberdade quando começaram a nascer seus primeiro pelos pubianos pensou que estava na hora de cair seu instrumento de mira e lançamento a distância de xixi e teria que passar a sentar no vaso como fez aquela jovem. Ficou apavorado. Ele considerava o vaso um buraco enorme e assustador e a ideia de se sentar nele era suicídio. Bom, estar em pé diante dele era possível, mas sentar não. E se for perguntado: e o n°2?. Bom, para isso ele ainda era adepto do pinico.

Poltrão pouco a pouco foi vencendo seus medos de infância e adolescência. Crescendo, foi se tornando uma pessoa esclarecida e, como tal, começara a conhecer os “fantasmas” da fase adulta.

O medo de Poltrão não se restringia apenas a um medo físico de dor ou de morte, mas de tudo que lhe era desconhecido. Era recordista em fobias: abissofobia (medo de abismos, o caso do vaso), claustrofobia, hidrofobia, hemofobia, e até mesmo afobia (medo de não ter fobia).

O primeiro emprego de Poltrão foi de vendedor. Não deu nada certo. Ele vivia com o constante medo de assaltos a loja em que trabalhava. Ao menor movimento estranho, corria para se esconder em baixo do balcão, no banheiro, qualquer lugar. Por causa disso decidiu estudar para poder trabalhar em algo mais seguro. Então, começou a pesquisar. Pensou em ser professor, mas lembrou das ondas de ataque dentro das escolas em que alunos revoltados e sem motivo aparente resolvem bancar os “bad boys”. Também temia em ter de dar uma nota baixa a um aluno e este revidar agressivamente. Pensou também em estudar medicina, mas tinha medo de doenças (não podemos esquecer que também era hemofóbico). Engenharia civil... desabamento. Engenharia elétrica... choques. Administração de empresas... prejuízos, impostos, receita federal! Ele até chegou a cogitar profissões como, advogado, piloto, químico, e juiz de futebol, mas as cogitações duraram apenas frações de segundo. Enfim, achou a profissão ideal, bibliotecário. É o ambiente perfeito! Sempre calmo, sem máquinas perigosas, sem doenças e sem risco de assaltos, afinal, todo ladrão que se preze, não irá assaltar a uma biblioteca e como não terminou os estudos, também não saberia quais os melhores tesouros literários disponíveis para afanar. Além disso, a falta de estudo do ladrão faz parte da sua desculpa para estar nesta vida:

— “É que nóis num tem as oportunidade, tá ligado?”.

Por isso, para Poltrão não havia problema com o tipo de pessoas que frequentam a biblioteca, todos vão com um interesse comum, ou querem pesquisar, ler ou fazer trabalho de escola. E o que é melhor, ninguém liga para bibliotecário, só precisam dele para encontrar algum livro e pronto, depois devolvem o livro e vão embora sem falar nada.

Na vida amorosa Poltrão também encontrava dificuldades. Não se arriscava em pedir uma mulher em namoro, pois tinha medo de levar um “pé na bunda”. Sua primeira namorada foi a mulher com quem casou. Foi ela quem fez o pedido. Tratava-se de uma mistura de paixão com pena e também o fetiche que ela tinha por bibliotecário. Na mente dela o bibliotecário era uma espécie de guardião das ideias, um homem rodeado por infinitas sabedorias. E as controla, organiza, diz onde cada uma deve ficar. A esposa de Poltrão via “poder” nisso, poder intelectual, psíquico, isto é, se precisar de uma resposta, terá varias opiniões, vários pontos de vista, tudo ao alcance da mão. Esta ali, a mente de filósofos, pensadores, gênios da física, química, matemática, enfim, tudo à sua disposição.

A esposa de Poltrão, era feliz no casamento, embora, as vezes, encontrava alguma dificuldade para lidar com o marido. Por exemplo, ela teve que se acostumar a enfrentar sozinha as hordas parasitárias que invadiam sua casa: baratas, ratos, etc. Neste caso, a desculpa dele era dizer que pertencia a sociedade protetora dos animais e que respeitava os seres vivos. Tarefas práticas, geralmente masculinas, ela também teve que aprender, como trocar fusível ou a resistência do chuveiro.

Apesar de tudo, Poltrão foi sempre querido por sua esposa e amigos. Ela, mesmo com todas as dificuldades que tinha com o marido para convencê-lo e encorajá-lo, ainda não tinha a ideia da dimensão do grau de poltronice dele. Ela enfrentaria agora a mais difícil de todas as missões: convencê-lo a verificar, a noite, um barulho em um dos cômodos da casa.

O que segue foram os últimos acontecimentos da vida de Poltrão.

Ele estava dormindo, o relógio marcava vinte horas (tinha o costume de dormir cedo para passar menos tempo no escuro). Subitamente ele é acordado por sua esposa:

— Amor! Amor! Acorde!

— Aaaaaaaaaaargh! O QUE FOI? TÁ MALUCA? QUER ME MATAR DE SUSTO?

— É que eu ouvi um barulho estranho lá em baixo.

— Hããããã! SOCORRO, alguém me ajude pelo amor de Deus...

— Calma querido, talvez não seja nada de mais.

— É mesmo? Então vá ver o que é.

— Eeeeu? Você é que tem que ir. Você não é o homem da casa?

— O quê? Eu? mas pode ter um ladrão lá em baixo.

— E daí? Você não vai deixar sua esposa frágil e delicada ir né?

— Mas pense bem querida, hoje em dia as mulheres não estão lutando por direitos iguais? Então, eu estou te dando a chance de fazer o que um homem faz.

— Não acredito no que estou ouvindo. Fale a verdade vai, você está morrendo de medo, não é?

— Não é isso, é que eu não estou me sentindo bem, estou com tontura, se eu descer as escadas agora, posso cair e desmaiar e assim não vou poder te proteger caso o ladrão nos encontre.

—Sei! Me proteger né? Olha, por que você não se inspira nos corajosos personagens da história que estão nos livros da sua biblioteca, Aquiles, Atila, ou ainda, Napoleão, que dizem que não tinha grande estatura mas tinha muita bravura...

— Querida! Aquiles tinha um calcanhar de “moça”, Atila morreu envenenado por uma mulher. E você já ouviu como dizem que Napoleão perdeu a guerra?

— Então seja como um desbravador. Colombo por exemplo, ninguém acreditava nele quando de repente descobriu a América. Até os portugueses lutaram pelo direito de explorar estas terras e descobriram o Brasil.

— Colombo só queria provar que a terra era redonda achando um novo caminho para as índias, e acabou “tropeçando” na América. Cabral chegou ao Brasil com canhões e armas de fogo contra índios que usam apenas lanças e flechas.

— Mas mesmo assim não foi preciso coragem para enfrentar os índios?

— Sim, mas eu é que seria o índio desta história. O ladrão lá em baixo, provavelmente tem uma arma, e eu não tenho nada.

— Mas pode ser que não seja um ladrão, talvez seja um gato, ou um rato ou o vento em uma janela aberta.

—E se não for? E se foi o ladrão que abriu a janela?

— Ai “Poltrão”, você e sua covardia.

— Não é cov...

— Deixa pra lá. Eu vou, pronto.

Ela se vira para sair do quarto, neste momento, a expressão de Poltrão muda, e com uma voz de seriedade, grave e encorajadora diz:

— Espere querida!

Ela se volta novamente para ele e com um voz meiga, responde:

— Sim meu bem! Já sei, você mudou de ideia por minha causa não foi? Não vai deixar eu correr esse risco, não é?

— Bem... é que eu queria perguntar, se alguma coisa te acontecer, você iria se importar se eu arrumasse outra pessoa? Sabe como é né? Eu não gosto de dormir sozinho.

O brilho nos olhos dela desaparece e com uma expressão de raiva diz:

— Não acredito no que eu ouço. Diga, você é um homem ou um rato?

— Qual o problema em ser um rato? O rato é um dos animais mais corajosos, afinal, ele está sempre no território inimigo, e na maioria das vezes, trabalha só a noite no escuro.

— Ótimo! Seja pelo menos como um rato então, agora está escuro , vai e adentre o território inimigo.

— Eu não posso ser um rato querida, porque o rato também é ladrão, ou por acaso você já viu rato comprando ou pedindo emprestado?

Poltrão estava estranhando o porquê de sua esposa estar insistindo tanto, mas resistia bravamente. A mulher continuava a sua missão impossível. Ela usou todas as suas capacidades persuasivas e poder de argumentação, mas Poltrão resistia “bravamente”, arrumava argumentos fortes. A situação se transformou num debate retórico de causar inveja a grandes oradores. Até que, enfim, a “cartada” vitoriosa:

— JÁ CHEGA! Eu vou! Ou você vem comigo ou vai ficar aqui “SOZINHO”, e tomara que o ladrão passe por aqui depois.

Sombras encheram o pensamento de Poltrão. Um calor tomou o seu rosto, ao mesmo tempo que um frio subia-lhe pela espinha. Seu estômago reagiu como se estivesse em uma montanha russa descendo a toda velocidade. Quando conseguiu organizar as ideias, ele pensou que, sozinho naquele quarto, seu único escudo seria o cobertor. Imaginando o que seria ficar ali solitário em risco iminente, disse:

— Tá bom querida! eu vou com você, afinal, eu tenho que te proteger, né?

— Ufa! Finalmente.

Enfim, a esposa conseguiu convencê-lo a verificar aquele barulho. Isto a deixou orgulhosa de si, pois, ela jamais havia conseguido algo parecido.

Finalmente, começaram a descer as escadas. Poltrão, trêmulo, suando frio, agarra-se a sua esposa. Realmente ele cairia daquelas escadas se não tivesse quem o amparasse.

Silêncio, escuridão, quanto mais eles se aproximam do local, mais trêmulo Poltrão fica. Estão chegando na cozinha, é de lá que vem o barulho. Se aproximam mais. Ele jamais ousou tanto. Se coragem puder ser definido como “o enfrentamento dos medos”, então, aquele era o maior ato de coragem que já existiu.

Enfim, chegam a cozinha, ele se recusa a tocar na maçaneta da porta. A esposa, com dificuldade, tendo que segurá-lo apenas com uma das mãos para com a outra girar a maçaneta, vai abrindo a porta devagar. Ao abri-la por completo, as luzes violentamente se acendem diante dos olhos de Poltrão e um barulho aterrador vem em sua direção:

— Parabeeeens pra você...

Morreu com o susto.

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*Adjetivo 1. Covarde, medroso, pusilânime. substantivo masculino 2. Homem timorato (tímido, medroso, acanhado).