Os homens que comem as palavras

O dicionário sempre exerceu em mim um grande temor, não por suas palavras complicadas e difíceis, mas pelo tamanho com que nos é apresentado e pela clareza de significados que são dados a cada palavra.

Cada vez mais vocábulos são adicionados aos novos volumes e mais me aprisiono. Atualmente isto se deve, em parte, à grande influência da internet no mundo globalizado, centenas de novas palavras surgiram com a linguagem virtual. Umas em forma de símbolos, outras por pura supressão de letras e fonemas, outras realmente pela necessidade de existirem.

Esse novo eldorado trouxe situações inusitadas e até inacreditáveis para os mais afeitos às novidades. A interação homem-máquina proporcionou o nascimento do Ser que come palavras. Em vez de absorver o que o dicionário nos ensina, ele passou a digerir as “palavras e os seus múltiplos significados”. Esse mecanismo pode parecer contraditório, mas não é. Imagine que hoje, no café da manhã, eu comi a riqueza que era, até então, um dos meus maiores sonhos. Aquela loucura por ter um carro novo, foi digerida por mim com naturalidade. O sabor dessa descoberta foi perceber que eu, agora, sou um homem desnudo, já não tenho a preocupação de abocanhar mais e mais riquezas. Eu já estava ficando escravo daquela ideia porque havia aprisionado em mim um desejo quase insuportável no afã, por exemplo, de comprar um carro da moda que fosse, pelo menos, igual ao do meu ilustre vizinho, aquele que passa a maior parte do dia contando dinheiro na janela dos fundos. Eu me tornava escravo de mim mesmo. Por diversas vezes vi, o ilustre, cheirando suas moedas, algumas que já nem têm mais valor monetário. Às vezes, acho que ele entra em estado de gozo, quando recebe um dinheiro novo. Nunca ouvi dizer que ele vendeu ou doou qualquer coisa, qualquer objeto de maior ou menor valor.

Agora, comendo as palavras e seus significados, tudo ficou mais fácil para mim. Estou convencido de que meu carro velho pode fazer os mesmos serviços que o novo faria, com uma vantagem ímpar: fiquei livre das minhas próprias cobranças.

Conversando com um amigo, relatei a ele o que havia feito. Ele, depois de ouvir-me com interesse, afirmou que comeria algumas palavras e que estava pronto para deglutir todo o dicionário. Só ainda não havia resolvido se esperaria o Dia dos Namorados ou o próximo Natal, mas que já estava sentenciado... Isso era fato consumado.

Quis saber dele qual o motivo de sua decisão, justo dele, que sempre me disse que amava as palavras e suas verdades acima de qualquer coisa, inclusive aquelas que ele nem conhecia direito. Ele respondeu que no dia combinado, eu teria as respostas para as minhas perguntas.

O acertado foi o Dia dos Namorados. Assim fui presenciar a reação dos seus convidados, pois para mim, o “fenômeno” já não era novidade, mas eu precisava das suas respostas. Os vizinhos e os velhos companheiros estavam atônitos, sem saber o que fazer e, como se fossem crianças, acotovelavam dentro do diminuto espaço da sala, esperavam pelo espetáculo que fora anunciado aos quatro cantos do condomínio.

Inicialmente ele disse que comeria a palavra ira e assim procedeu. Notei que sua barriga aumentava e diminuía como se fosse um lagarto que acabara de ingerir um elefante, um daqueles de tromba bem grande. Alguns convidados viram tudo com absoluta naturalidade, outros nem tanto.

No centro da sala, um dicionário gigantesco ocupava a maior parte da mesa. Jamais imaginei que alguém pudesse ter em sua casa algo tão avantajado. A capa era espessa e de cor encarnada, tinha a aparência de algo bastante usado. Estava aberto como se fosse a própria fonte do saber. Sob o volume um cavalete o inclinava de forma que a leitura pudesse ser feita com tranquilidade. Curioso e de rabo de olho, li no canto da página – liberdade.

Bastaram alguns segundos para que o dicionário fosse consumido, assim como o Alcorão, a Bíblia, os códigos. Todas as leis e uma porção de outros livros que foram surgindo trazidos pelos vizinhos e amigos. Quando tudo parecia quieto tive a sensação de que todas as portas haviam sido abertas. Eu e eles estávamos prontos para voar. Voamos...!!!

Pedro Cardoso DF
Enviado por Pedro Cardoso DF em 06/06/2007
Reeditado em 05/10/2017
Código do texto: T515735
Classificação de conteúdo: seguro