Nomes

Nomes





Toda vez que procuro pelo isqueiro, não acho. Olho para os locais óbvios por alguns segundos e raciocino (fumantes raciocinam?) que estou procurando pelo isqueiro laranja, por isso não acho. O laranja esfumou-se e agora tenho um verde. Torno a olhar para os locais óbvios e ei-lo. Existe um nome para isso.

Até ontem eles estavam votando para pagar a passagem das esposas, credo, não se brinca com coisa séria, paga-se um preço pela alienação obscena. Nomes conhecidos rotulam esse lúgubre ensejo.

Sabe aquela figura feminina esculpida, que serve de suporte arquitetônico tomando o lugar de uma coluna de sustentação, em geral com um entablamento na cabeça? Cariátide.

O ex- presidente quer um exército particular nas ruas contra quem tem um cantinho e um violão, ou um carrinho, uma casinha e deseja ver a Torre Eiffel, um dia. Nem me atrevo a nomear um lance desses, penso que se tivesse um exército à disposição punha todo mundo de branco estendendo a mão, hoje seria para os acreanos submersos e amanhã e depois para a galera do teto zinco em cima dos morros, fala-se muito em favelas nas mídias, há eons, mas ninguém acaba com elas. Falar é fácil. Agir seria glamurosamente conspícuo, se alguém arregaçasse as mangas, em especial os que são pagos para tal finalidade. Ou inexiste essa finalidade?

Que assalto é esse onde ladrões vão de fuzil saquear uma casa? Não dá pra chamar de carnaval de rua o que aconteceu - seguidamente - na Vila Madalena em São Paulo. Impossível falar em busca pelo conhecimento com os estupros coletivos e sevícias outras apadrinhadas nos próprios campus por uma canalha escondida que não acredita em nada a não ser na elegia da chicana. E como é que se rouba banco todo dia, todo dia, não há um dia de trégua? Que tipo de trabalho é esse?

Purdah, “cortina” em persa, também significa a tradição de proibir mulheres de serem vistas por homens, a menos que sejam seus parentes diretos. Repare que isso tem nome.

Semana passada estive com meu filho num banco de praça, ele me falava de livros e viagens, planos, descobertas, decepções, eu procurava o isqueiro verde, de repente o insight, quando a gente se vê apalpando o ar sem se mover, havia algo muito importante a ser dito, estava ao alcance da minha mão, então....aha. Filho, você já leu O Pequeno Príncipe? Ele pensou antes de responder. Não. Papeamos mais um pouco, um momento muito agradável, sabe? Você pode até pensar que não é preciso nomear essas coisas, ele me contou que vai passar 6 meses trabalhando noutro estado, deixei pra me emocionar depois, havia uma livraria próxima e uma edição novinha do legado de Antoine à nossa espera. Fiz uma dedicatória e tudo. Expliquei para ele um pouco do autor, sublinhando que sua obra é um diáfano almofariz, uma vez que passamos por ele jamais tornaremos ao estado anterior.

Domingo último nos encontramos de novo, dia de antemanhã nos corações, levamos a avó, que cacarejava sem parar, orgulhosa do neto, para um passeio pelo último reduto arborizado da auto mutilante São Paulo, troçamos, pois de troça também se vive, encerramos na mesma praça, sob uns bambus cortados a canivete com nomes de antigos passantes. Me falou do livro, que lhe causou surpresa e lera de um gole só. Eu tinha a idade dele, vinte e pouquinhos, quando a navegação celeste de Antoine caiu no meu colo. Desde então coisas foram descortinadas, acessos escondidos localizados, trazidos à tona e com o acúmulo de itens semelhantes tenta-se refrear o estúpido movimento de colocar mais vida na vida. Por instantes respira-se como os Mestres Antigos de Lao Tsé: "Reservados eram eles, Como se hóspedes fossem; Amoldáveis eram eles, Como gelo que se derrete; Autênticos eram eles, Como cerne de madeira de lei; Amplos eram eles, Como vales abertos; Impenetráveis eram eles, Como águas turvas".

Segunda ele embarcou, nova cidade, novos ares, nossos desafios são diferentes, quando não estou procurando o isqueiro, estou a cata de nomes para um sem número de elementos em constante movimento, quero discerni-los, emoldura-los, gestos tolos de uma vivência que tenta imprimir para sempre o gosto doce de instantes que acabaram de passar.

Também por isso escreve-se.

"A tinta mais fraca vale mais do que a melhor memória".



(Imagem: Alexander Calder, Pennsylvania, 1898–1976)
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 03/03/2015
Reeditado em 15/08/2020
Código do texto: T5157304
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