Não se cora mais como em Tolstoi

Fala sério: qual foi a última vez que você corou? Sim, corar, “ganhar cor”, sobretudo vermelha, enrubescer diante de alguma situação particularmente embaraçosa ou vergonhosa. Há alguns dias eu terminei a leitura de “Ana Karenina”, o clássico do Tolstoi, um belo livro com mais de 700 páginas e das quais não se passa duas sem que algum personagem core. Há inclusive algumas passagens em que se cora “até as orelhas”, ou se enrubesce “até a raiz dos cabelos”. Não me parece que isso aconteça com a mesma frequência em nossos dias. Seria um costume de época, mais ou menos como os espartilhos ou as escarradeiras? Houve um tempo em que desmaiávamos muito mais do que hoje, bem representado pelas “Novelas Exemplares”, do Cervantes. Mas este tempo passou, e eu me pergunto se também não teria passado o tempo que nos sentíamos tão constrangidos a ponto de corar.

É claro que falo isso em termos gerais, porque, pessoalmente, eu ainda coro. E vou dizer uma coisa, não tem nada mais desagradável que corar. As mulheres podem até achar bonitinho, “ai que fofo, ele ficou vermelho”, mas a verdade é que quem cora não tem o menor desejo de corar. E o pior de tudo é que não há absolutamente nada a fazer: se você começou a corar, vai corar até o fim. Geralmente as pessoas percebem quando isso acontece e fazem questão de jogar na sua cara que você está corando. Se ainda havia uma possibilidade de que eu não corasse, é aí que ela cai por terra. Isso sem falar nas vezes em alguém pergunta, em tom de acusação, quem foi que fez tal coisa, e eu, embora inocente, sou o único que começa a corar, o que equivale a uma confissão. Nessas horas eu coro, mas não corro.

E por que raios eu coro? Certamente porque me sinto ameaçado, mas também porque sou capaz de me preocupar com a opinião dos outros – aliás, deve ser justamente por isso que estamos corando menos. Vergonha e embaraço talvez sejam costumes de época. Mas não me peçam para dizer essas coisas pessoalmente: ficarei vermelho.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 02/03/2015
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