Pequenas histórias 71

Ontem apenas

Ontem apenas alterei o número do cabeçalho e nada escrevi. E não quero escrever sobre falta de inspiração. Isso já deu muita manga para vários autores escreverem, não quero ser mais um, apesar de que já escrevi sobre esse tema que, para mim, já a muito batido.

Também não quero escrever sobre o tempo, esse verão de frio e chuva e garoa que só atrapalha e impede os movimentos. Moro num país tropical, se gostasse de frio iria morar na Groenlândia, se é que lá é frio.

Também não quero escrever sobre o fretado. Gozado, depois que passei a usar o fretado nunca mais escrevi sobre ele. E muito menos com o que ocorre durante a viagem. Viagem! Não deixa de ser uma viagem, de casa aqui levo aproximadamente uma hora. Mas não quero falar sobre ele, apesar de que hoje passou cedo, vamos dizer no horário, e chegou aqui na Paulista antes das oito.

Também não quero escrever sobre me policiar, pois já escrevi duas vezes nesse texto a expressão: “apesar de que”, e um texto com palavras repetidas torna-se um texto pobre, fajuto, demonstra a pouca capacidade criativa do escritor.

Também não quero escrever sobre a reforma do calçamento da Avenida Paulista e o transtorno que está causando. É reforma para melhorar, logo espero, esse transtorno acabara.

Também não quero escrever sobre a espera longa que se tem para pegar o elevador, e nem sobre o pessoal, uns com a coleira a mão outros já com a coleira parecendo que tem um peso enorme pendurado no pescoço, não quero escrever sobre isso, não.

Também não quero escrever sobre a ansiedade em cumprimentar os aniversariantes. Parece uma paranoia obsessiva que, se não cumprimentar será entendido como se não gostasse da pessoa. Para mim, se me cumprimentarem ou não me cumprimentarem não faz diferença nenhuma, não vou ficar magoado ou chateado, não me sentirei nem mais gordo e nem mais magro.

Também não quero escrever sobre o desaparecimento do fone de ouvido que estava em cima da mesa, onde o deixo todos os dias. Não que seja algo importante, mas se sumiu uma porcaria de fone de ouvido, futuramente poderá sumir algo mais valioso. E também, não estou culpando ninguém pelo seu sumiço, pois pode ser que ele tenha caído num dos cantos da mesa, ou enroscado em algum monte de papéis, quem sabe!

Também não quero escrever sobre o que faço, sobre o meu serviço ingrato e chato. Se faço esse serviço, perfurar papéis o dia todo é por que não me esforcei para ter uma função melhor, portanto nada de me lamentar.

Também não vou escrever sobre o aprisionamento necessário, o qual sou forçado há oito horas por dia para me manter sobrevivente dessa massa invisível chamada de humano.

Também não quero escrever sobre as dores nas costas. A dificuldade que às vezes tenho ao me levantar de manhã. A dificuldade em erguer as caixas, coisa que o médico me proibiu. Talvez, será preciso uma operação, não sei ainda. E também, o medo de perder o convênio e enfrentar as filhas enormes dos SUS da vida.

Também não quero escrever sobre os amigos reais que são poucos e fiéis, pois como dizia a filosofa minha mãe: antes pouco do que muito. E nessa filosofia barata de beira de fogão, fui criado humildemente. Talvez, por isso não almejo vida melhor, o pouco que tenho me basta, não tenho pretensão em ser rico, pois sempre me julguei rico.

Também não quero escrever sobre os amigos virtuais. Os amigos que desde um mil novecentos e noventa e oito compartilho ideias, ensinamentos poéticos. Desde a Sociedade dos Poetas Urbanos, passando pelo Mar de Poesia, depois Fórum de Poesia, Escritas, Blinda Alvorada, Amantes das Leituras, Anjos de Prata – onde publico meus textos: www.anjosdeprata.com.br -, Ateneu, Amantes da Poesia, Rascunhos Poéticos, aos sábados na Casa das Rosas, onde conheci poetas formidáveis e sei que vou conhecer muitos outros, tanto ou quanto formidáveis aos que já conheço, e o blog: Poetas Lusófonos: http://www.poetas-lusofonos.blogspot.com, onde depois de anos, os poetas amigos voltam a se encontrarem.

Também não quero escrever sobre a fome. Verme faminto que nunca está saciado. Verme que alimenta a máquina política a engordar em época de eleições. Não, não falarei dela, a fome, solitária corroendo estômagos perdidos nas marquises da cidade, engabelados pelo craque de sonhos não realizados.

Também não quero escrever sobre o vicio. O vicio mórbido que todos um dia deveriam experimentar isto porque, toda experiência é válida, consumista estampando noticias na mídia em geral. Viva o vicio sincero elevando a intelectualidade de nosso ser a cada dia vivido.

Também não quero escrever sobre o amor, o amor que engole que domina machista ou feminista, o amor solitário refugiando nos copos vazios de alma a procura de companhia. O amor triste pisando poças iluminadas pela lua da madrugada depois da chuva. O amor não alcançado em noites de caça por bares e boates e saunas de desiludidos da vida.

Também não quero escrever...

Espere. Disse a imagem refletida no espelho a sua frente.

Sim. Disse ele, o que foi?

Porra! Você escreveu que não quer escrever sobre uma infinidade de coisas.

Sim!

Reparou que nesse não dizer, você disse o que não queria dizer?

Ele olhou seu reflexo.

Vá à merda!

Salvou o texto. Clicou em enviar. Fechou o Word. Pensou: mais um texto para o editorial da revista. Fechou o note book. Encarou seu eu no reflexo do espelho. Tomou uma decisão. Jogou o note book no espelho. Reluziram estilhaços de vidros por todos os lados do seu sentimento. Depois sentou na poltrona e se serviu de uma boa dose de uísque e adormeceu sossegado.

No dia seguinte, os vizinhos presenciaram a ambulância levando-o para a última viagem.

pastorelli

Pastorelli
Enviado por Pastorelli em 27/02/2015
Código do texto: T5151754
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