UM CHEIRO DE TERRA MOLHADA DE CHUVA E FRAGRÂNCIA DE JASMINS...
Quinta literária na Nobel Salgado Filho, em Natal/RN. Casa lotada. Estava à mesa junto com os poetas João Andrade, Drika Duarte e Leocy Saraiva. Tivemos as boas vindas do anfitrião e escritor Aluisio Azevedo Jr., autor de "Havana". Os trabalhos foram coordenados pelo também escritor e pesquisar de literatura Thiago Gonzaga. Cada um de nós falou um pouco sobre o seu trabalho. Um público bem participante fez várias perguntas. Tudo transmitido via web. Com a possibilidade de participação de internautas.
Terminada a sessão de perguntas e respostas, fui tomar um capucino com Manoel Onofre Jr, e comer uma empada do buffet do Mr. Barros, tudo muito saboroso.
Enquanto degustava a empada e tomava o café, comentei com Manoel Onofre que sentira falta de alguma pergunta dele. Ele, do alto de sua simplicidade e sabedoria, me confessou que havia pensado em fazer sim, uma pergunta. Mas que o tempo estava meio curto e tinha muita gente participando. Então, eu quis saber o que ele teria perguntado. O autor de “O chão dos simples”, naquela sua voz grave, pausada, com forte sotaque sertanejo, me disse que, se tivesse tido a oportunidade, teria pedido a nossa opinião sobre o que é “inspiração”.
- Nossa! Que fantástico! - pensei.
Depois, a caminho de casa, fiquei pensando sobre aquela questão. O que é mesmo inspiração? E cheguei à conclusão de que não se tem uma resposta muito direta para isso. Para se chegar a um conceito de inspiração, para tentar entendê-la, podemos pensar em algumas coisas.
Todos nós temos alguma vivência. O que significa que ao longo da vida experimentamos uma diversidade de coisas: saboreamos comidas, viajamos, passeamos. Contemplamos, em muitos finais de tarde, o pôr do sol e o nascer da lua cheia no mar, por sobre as matas, ou por detrás de montanhas. Nadamos em rios, em lagoas, no mar. Colhemos flores, caçamos borboletas. Jogamos bolinha de gude. Ou brincamos de boneca e de casinha. Jogamos pelada e peteca. Namoramos. Enfim, fizemos muitas coisas. Milhares e milhares de cenas desfilaram diante dos nossos olhos. Conversamos com diferentes pessoas. Tivemos professores e pessoas que nos influenciaram. E assistimos a filmes. E lemos livros de vários gêneros que nos encantaram. Tudo isso, de uma forma ou de outra, foi sendo armazenado no nosso arquivo e formando um extenso repertório interno. Uma memória e tanto!
Então. Para mim a inspiração é a capacidade que todo ser humano tem de acessar esse enorme arquivo de suas vivências, de suas lembranças. Ou até mesmo de sonhos que teve. E de fazer um uso criativo dessa gama de vivências, transformando-a em arte. Sob diversas formas de expressão. Alguns se utilizam das artes plásticas ou fotográfica e cinematográfica. Outros, da música. No caso de escritores e poetas, tudo isso pode virar conto, crônica, novela, romance ou poesia. Ou outra forma de uso criativo da palava escrita.
Gosto de comparar a inspiração a uma forma de sonho. Que podem ser sonhos recorrentes ou casuais. Ou até mesmo aqueles sonhos que se sonha acordado.
Então, falemos um pouco sobre o sonho. Digamos que você tenha sonhado com um tigre, por exemplo. Pode ser que ele estivesse lhe perseguindo ou não. Mas a verdade é que você sonhou com um tigre E ficou tentando interpretar o sonho (talvez até para jogar no bicho... ou para entender o que aquele sonho poderia significar para você...) Então você ficou escarafunchando a sua mente até se lembrar que, numa determinada tarde, ao caminhar pela rua, você havia notado um gato muito bonito, listrado. E que você o associara a um tigre... “Nossa, como ele se parece com um tigre!” - você havia pensado, ao contemplá-lo na sua leveza e elegância ao atravessar uma rua, por entre aquela floresta de carros do trânsito louco da cidade. Então, você vira aquele gato e depois o esquecera. Afinal, o que importa um gato perdido numa cidade? Então, mais para a frente, aquele gato lhe veio como um enorme tigre. Ou seja, o seu inconsciente ou subconsciente havia processado aquela informação. Porque tudo o que a gente vê ou sente, de alguma forma fica registrado. Só que a gente se esquece muito fácil. E, às vezes, um sonho serve para nos lembrar de alguma lição que precisa aflorar ao nosso consciente. De uma forma mágica. Inspiração, então, é magnificar e redimensionar coisas triviais que contemplamos ou que vivenciamos. E fazer com que elas tenham a grandeza, a leveza ou a volatilidade de um sonho.
Para mim, então, a inspiração se parece com uma lembrança de sonho. E o sonho poderá ter alguma base na realidade concreta que foi por nós temporariamente esquecida. E o sonho ganha contornos bem interessantes, transformado-se em algo um pouco maior do que os nossos olhos haviam contemplado. O sonho pode ser uma recriação subjetiva de uma realidade concreta.
Assim, pode-se dizer que inspiração são lembranças que afloram diretamente do subconsciente, que voltam e ganham uma outra dimensão, tentando estabelecer analogias entre a realidade e a fantasia. Ajudam a amalgamar a realidade e a capacidade de imaginação criativa.
Uma outra vertente. A associação de imagens. Ítalo Calvino disse que muito do seu processo criativo tinha como ponto de partida uma determinada imagem. Eu mesmo já experimentei esse tipo de “inspiração”. Contemplar uma determinada imagem e tentar descobrir o que aquela imagem está tentando dizer.
Outras vezes, pode ser uma música que dispara dentro de nós um processo associativo. E mergulhamos em milhares de mundos de uma só vez, todos eles evocados a partir da memória auditiva. A música nos traz cenários distantes. Quase sempre temos alguma música que marcou algum episódio em nossa vida. E toda a vez que ouvimos aquela música, somos transportados para um mundo que nos faz sonhar de olhos acordados. Ou ter visões que podem se transformar num desenho ou num poema.
Inspiração é um processo de transformação, de reciclagem. A música vira poema. O poema vira música. A imagem vira texto. O texto te conduz a uma imagem. E a imagem te leva a outra imagem. E tudo isso é um processo mágico em que uma coisa está sempre virando outra. Como no livro de Salizete Freire “Tudo vira outra história”. E pode ter várias histórias dentro de uma mesma história. E tudo pode virar poema.
Vamos a um outro exemplo. Quando a gente sente um perfume no ar, uma determinada fragrância. Por exemplo, um cheiro de jasmim. Isso poderá ser altamente inspirador. E nos levar a um processo criativo interessante. Pode disparar processos rememorativos que são aproveitados como fonte de produção artística.
Eu me lembro que, quando era criança, apreciava o cheiro que exalava de um caramanchão de jasmins no nosso quintal. Voltar da escola, chegar em casa, era poder sentir, de novo, o cheiro do jasmim. Por isso, ainda hoje, eu considero esse perfume como algo sagrado, uma sensação mágica. Para mim, ser poeta é como se inebriar com a fragrância do jasmim. E escrever versos perfumados, que evocam o cheiro da infância.
Então, a inspiração nada mais é do que acessar fontes escondidas que você já tem dentro de você. O que está fora, por exemplo, um pôr do sol, ganha uma analogia com o seu sol interior. Então, você retira do seu arquivo todas as lembranças de luz e calor. Raios de sol lhe lembram aquele dia em que você foi até o rio aprender a nadar. E já era quase finalzinho de tarde e você havia saído escondido de casa. Então, o sol brilhava, mas dentro de você também brilhava o medo de que sua mãe descobrisse sua aventura proibida de ir nadar no rio. Então, num dia futuro, anos mais tarde, você escreve um poema, no qual você associa o pôr do sol com alegria, mas também com o medo. E você escreve um poema melancólico de pôr do sol.
De onde veio essa inspiração? De uma recordação de infância. Então você se lembra daquela tarde. E resolve que a alegria precisa superar o medo. E você escreve um poema de um menino nadando na superfície das águas douradas... E esse menino, mais que medo, tem alegria. A alegria de se descobrir livre dos medos. E se banha nas águas do sol. E você intitula o poema de “o poema do menino das águas do sol.”
Sob esse prisma, inspiração pode ser como uma chave para descerrar portas lacradas dentro da gente. Abrir as janelas para o desconhecido, para aquele conhecimento que está no seu subconsciente. O que dispara esse processo pode ser algum elemento externo. Uma música, uma imagem bonita, um cheiro, uma sensação da brisa no rosto, o sabor de uma fruta, o voo de um pássaro, de uma borboleta ou de um colibri. Tudo isso serve para inspirar, porque são coisas que estabelecem uma ponte entre o consciente e o subconsciente.
Pode-se dizer, então que inspiração deriva da nossa capacidade de estabelecer conexões entre o aparentemente desconexo. Criar pontes para o impossível. Como fazemos no sonho. Inspiração é um jeito de sonhar de olhos abertos. É acessar a memória da natureza, comungar com todo o espírito da nossa ancestralidade. Acessar a memória dos mortos. Acessar o mundo para além do universo visível. É penetrar no nosso lado sombra e trazê-lo para a luz. Isso é inspiração.
Noutras palavras, inspiração é uma oportunidade que a gente tem de reinventar a própria história. E colocar nela algum tempero, alguma fragrância. Um cheiro de terra molhada de chuva. E perfumes de jasmim.
INSPIRAÇÃO
Tu tens as cores de um arco-íris e o som das primaveras.
Tens o perfume dos jasmins da minha infância.
Um cheiro agreste, moreno, de terra molhada de chuva.
Rio perene, calmo, correndo por entre os capinzais.
Brisa soprando espantos e ternuras por entre os cafezais.
Borboleta colorida, de voo breve. Eterna dentro de mim.
Tu és a inspiração dos meus dias de aprender a ser, de novo, criança
a soprar lembranças coloridas em bolhas de sabão.
*José de Castro, jornalista, escritor, poeta. Mestre em Tecnologia da Educação. Autor de livros infantis (A marreca de Rebeca, O mundo em minhas mãos, Poemares, Poetrix, Dicionário Engraçado e A cozinha da Maria Farinha). Contato: josedecastro9@gmail.com