A DIFÍCIL TAREFA DE TRADUZIR-SE

O poeta maranhense Ferreira Gullar compôs um lindo poema intitulado “traduzir-se”, que segue:

Uma parte de mim

É todo mundo:

Outra parte é ninguém

Fundo sem fundo.

Uma parte de mim

é multidão:

outra parte estranheza

e solidão.

Uma parte de mim

pesa, pondera:

outra parte

delira.

Uma parte de mim

almoça e janta:

outra parte

se espanta.

Uma parte de mim

é permanente:

outra parte

se sabe de repente.

Uma parte de mim

é só vertigem:

outra parte,

linguagem.

Traduzir uma parte

na outra parte

— que é uma questão

de vida ou morte —

será arte?

Ferreira Gullar

Para Bakhtin, um filósofo russo, há “dois mundos absolutamente incomunicáveis e mutuamente impenetráveis: o mundo da cultura e o mundo da vida”, isto é, o mundo que orienta o ato da atividade de cada um (o ato religioso, profissional, conceitos, preconceitos, etc.), guiado pelo domínio da cultura, e o mundo em que tal ato se efetiva, irrepetivelmente, na singularidade da realização do ato, “a singularidade irrepetível da vida que se vive”.

Logo, o poeta ao se traduzir, traduziu, trouxe luz, também ao que afirma Bakhtin: “uma parte de mim é todo mundo”; “uma parte de mim é multidão”; “uma parte de mim pesa, pondera”; “uma parte de mim almoça e janta”; “uma parte de mim é permanente”; “Uma parte de mim é só vertigem”: Cultura. Formatação social.

Isto significa dizer que o que penso ser, o que você pensa que é, é apenas reflexo do que a sociedade espera/determina que você e eu sejamos. O seu verdadeiro eu, o que é singular, único, só é real “no evento singular do existir”.

Jorge Larrosa, outro filósofo espanhol, assevera ainda mais quando diz que o abismo entre o eu e o mundo é irresgatável e que não se pode afirmar viver uma vida plenamente sua.

Puxa! E eu que queria ser apenas Ademilson, como também o queria Raul Seixas quando disse que “Raul Seixas que Raul vai encarar” ou como na máxima de Sócrates: “Conheça-te a ti mesmo”.

Por outro lado a “outra parte é ninguém/Fundo sem fundo”; “estranheza e solidão”; “delira”; “se espanta”; “se sabe de repente”; “linguagem”.

Se o EU ainda não existe, ou se existe é fruto irrevogável da “unidade objetiva de um domínio da cultura”, viverei, então, “minha singularidade irrepetível da vida que se vive”, que vivo. Afinal:

Traduzir uma parte

na outra parte

— que é uma questão

de vida ou morte — será arte?

Mesmo porque, como Raul Seixas eu..

Prefiro ser

Essa metamorfose ambulante

[...]

Do que ter aquela velha opinião

Formada sobre tudo […].

E assim sigo, ora inventando, ora traduzindo. TRANSformando-me.