Calma, alma minha (EC)
Calma, alma minha, calminha – a voz da Fêmea no Divã
“Calma, alma minha, calminha! Você tem muito que aprender.” Foram as palavras que Ana Clara disse para si mesma ao sair do consultório do Dr. Gikovate. Ela repetia-as como a um mantra. Estava magoada e confusa. Aquele não era o Dr. Flávio Gikovate, com quem mantivera uma relação analista-paciente por dois anos, certamente ele tivera um surto, aquele discurso estava distante de suas ideias de liberdade e individualidade. As suas palavras foram rudes, precisas “Por favor, senhora, a sessão está encerrada, tenho outro paciente à espera. Passar bem.” Havia algo estranho, ele nem mesmo deixara que ela falasse, que contasse a sua história e justificasse o seu amor recém declarado, como se alguém pudesse explicar um sentimento.
Naquele dia, dezembro estava chegando, Ana Clara decidira contar ao seu terapeuta, Dr. Gikovate, do amor que cultivava por ele há anos, explicar que não se tratava de um amor transferencial, como é chamado na psicanálise, porque era anterior ao relacionamento analista-paciente. Ela não o considerava uma pessoa desconhecida, não o conhecia intimamente, mas o acompanhara nas suas conferências, ora no Rio Grande do Sul ora em São Paulo. Lera a maior parte de seus livros: “Ensaios sobre o amor e a solidão”, “Uma história de amor com final feliz” e seu preferido “Uma Nova Visão do Amor”. Assistia às suas vídeos-aula, no Youtube, e não perdia o Programa “No Divã do Gikovate”, semanalmente, pela Rádio CBN. Aquele sentimento nascera de uma profunda admiração e foi se consolidando com o passar do tempo.
Durante os dois anos de terapia, acostumara-se às palavras de incentivo a sua individualidade, aos desafios de buscar conhecer-se através da reflexão e autocrítica e - acredite-se – aos olhares furtivos, não confessáveis, que ambos partilhavam.
Agora, passados alguns verões, era uma mulher livre e mais decidida, embora uma melancolia a acompanhasse. Pedira o divórcio no mesmo dia em que se decepcionara com o analista, não podia mais enganar a si mesma e ao seu marido, um homem carinhoso e excelente pai. Com a guarda compartilhada dos filhos, voltara a trabalhar. Excelente professora de Filosofia, o envolvimento com os jovens a distraía daquele sentimento.
Sim, o amor que Ana Clara devotava ao renomado psicoterapeuta não esmaecera. Continuava vivo, lúcido. É claro que ela se desacostumara a acompanhá-lo, mesmo que a distância, o trabalho não permitia ausências, ainda assim, uma vez ou outra, passava defronte a clínica em que o Dr. Gikovate atendia. Avistava-o de longe, ficava feliz quando o percebia compenetrado no terno azul, sempre combinando com uma camisa branca; mas, se o sentia cabisbaixo, uma pulga atrás da orelha a deixava triste.
Ana Clara, apesar de perspicaz era reservada. No trabalho, preferia não participar das discussões acaloradas, não participava de redes sociais, e esquecia, quase sempre, o celular em casa. Depois de um dia cheio, teve enfim uma grande surpresa, na noite passada, quando pegou o celular para ver se havia alguma ligação perdida.
No display, um número e as iniciais F.G.. Seu coração começou a bater de forma acelerada e como se faz quando se acredita estar perto da morte – um filme passou em sua mente. O filho mais novo, no quarto ao lado, a chamava, mas Ana Clara não foi capaz de ouvir. Ficara paralisada, o desejo de sorver aquele sentimento novo a emudecera, levara-a para um lugar à parte do mundo e ela estremeceu. Não disse nada, tampouco fizera gesto algum. Adormecera.
No outro dia, acordou mais cedo, um sorriso tímido descobria seus lábios. Sobre o seu destino, nada sabemos. Mas a chama da vida de novo a despertara e ela repetiu mais uma vez:
“Calma, alma minha, calminha! Você tem muito a aprender!”.
Este texto faz parte do Exercício Criativo - E Eu Digo: Calma Alma Minha, Calminha! Você Tem Muito que Aprender.
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