Meu vô João
 

Por uma série de fatores adversos, pouco convivi com ele, apesar de ser meu avô, pai de meu pai. Primeiro, por morarmos em cidades mesmo que não muito distantes, cerca de 120 quilômetros, o que à época, quando não se dispunha das facilidades de hoje e por não possuirmos automóvel, visitarmo-nos realmente representava uma longa viagem. Segundo e principalmente por uma implicância de minha mãe com o fato de que ele era um “mulherengo” e possuía u´a amante, não permitindo que ele nos visitasse enquanto Vovó Irineia fosse viva, somente o aceitando em nossa casa após seu falecimento e mesmo assim após devidamente casado com a “dita cuja” e por insistência de meu pai, que não via razões para que persistisse aquela situação.
Vovó faleceu quando eu tinha 10 anos de idade e lembro-me bem ainda de seu jeitinho simples, gentil e carinhoso de ser, bem de acordo com a imagem que temos de nossas avós, sempre solícitas e sorridentes em sua simplicidade e, apesar de pequenina, uma verdadeira fortaleza na criação de seus onze filhos, três homens e oito mulheres, além de uma filha adotiva e de um primo igualmente por eles criado, filho de uma de suas filhas e quem certamente poderá acrescentar muitas de suas histórias em meu relato.
De vovô, as poucas e melhores lembranças são as de seus aniversários, quando se reuniam alguns de seus filhos e netos em sua casa em Anchieta, onde viveu por muitos anos e quando podíamos desfrutar de seus dotes de excelente cozinheiro, com suas receitas especiais de moquecas e torta capixaba temperadas com pimenta no ponto certo e que sem ela ficaria faltando algo que não sabíamos o que era, sem de mais nem de menos. Com ele, aprendi a comer pastéis devidamente preenchidos com chuchu e camarão, farinha e pimenta, além de arroz e feijão extraídos do próprio prato e, somente quem já experimentou a combinação destas iguarias, poderá me entender.
Também, ainda quando crianças, aguardávamos a oportunidade de nossos encontros para que ele pudesse nos demonstrar seus dotes de mágico, recortando jornais e revistas e levando-os ao forno de onde extrairia cédulas de cruzeiros para serem distribuídas entre a criançada, transformando tudo em festa.
Um eterno aventureiro, conta-se que durante décadas, juntamente com um pároco local seu companheiro de aventuras e do copo de cana, vasculhou e escavou as paredes e recônditos da centenária igreja construída por jesuítas em Anchieta em busca dos tesouros por eles deixados e até hoje ainda não descobertos, segundo o lendário. Ao que me consta, somente encontraram alguns poucos esqueletos ali enterrados, porém nada dos fantasiosos tesouros.
Vovô era extremamente inventivo e sob aquela figura frágil e sorridente, encontrava-se um espírito rebelde e amigo, eternamente jovem. Antecipando-se ao tempo, em sua casa facilmente deparava-se com suas traquitanas, como o precursor dos acendedores elétricos de fogão a gás por ele desenvolvido, que funcionava pelo curto circuito ocasionado entre duas placas de metal ao se passar rapidamente entre elas uma haste de ferro com um chumaço de algodão na ponta, embebido em álcool. Apesar de funcionar perfeitamente, exigia um pouco de prática, já que, por vezes, desligava o disjuntor da casa e deixando-a na escuridão.
Talvez esta sua fixação por circuitos elétricos seja decorrente de algum parafuso que tenha ficado meio frouxo em sua cabeça, quando, assolado por uma dor de dente que o angustiava já há dias e que não cedia com remédios convencionais, resolveu anestesiar-se com um choque elétrico aplicado diretamente sobre o próprio dente, o que lhe rendeu um desmaio e, pasmem, a definitiva cura da dor, prática que não recomendo a ninguém.
Com ele, aprendi a combater pernilongos e as terríveis muriçocas que assolavam a região com a proximidade dos mangues, queimando esterco de boi no quintal todas as tardes, ritual seguido por ele diariamente. Apesar do cheiro que irradiava e se impregnava em todos, talvez por isso, conseguíamos dormir livres do incômodo dos mosquitos.
Nosso último contato foi quando, hospitalizado para uma cirurgia de hérnia abdominal, após o longo período de internação na Santa Casa de Misericórdia, em Cachoeiro, onde cativou médicos e principalmente enfermeiras com sua jovialidade, deles se despediu e retornou a sua casa, com recomendações de repouso e de uma vida mais regrada e pacata, o que lhe asseguraria muitos anos de vida ainda – na semana seguinte, reuniu todos os amigos para comemorar seu restabelecimento, oferecendo-lhes uma de suas célebres moquecas com torta capixaba regadas com cerveja e boa pinga, rebentando os pontos da cirurgia anterior pelo tanto que comeu e tendo que retornar ao hospital, onde veio a falecer logo depois.
Mas, posso garantir, o sorriso de profunda felicidade permanentemente estampado em seu rosto contradizia que tivesse sofrido em qualquer daqueles momentos, principalmente pela serenidade com que partiu, lúcido e se despedindo de todos, informando-lhes que chegara, afinal, sua hora e deles se despedindo carinhosamente, como fora toda sua vida.
LHMignone
Enviado por LHMignone em 20/02/2015
Reeditado em 21/02/2015
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