Nada pra fazer

Feriado na roça. Terça-feira. Tarde cinza, amena, com pancadas de chuva espaçadas, muito bem-vindas quando vinham. Os adultos (menos eu) jogavam baralho e papeavam na varanda, enquanto as crianças brincavam lá em cima, no fogão a lenha que o avô tinha feito para elas. Eu bebia um chazinho de alfavaca com hortelã e canela, sem açúcar, e folheava 'Graça infinita' (livro-monstro de David Foster Wallace) na mesa comprida usada pras refeições. Bem relaxado, eu lia trechos do livro, relembrando cenas marcantes (como a da crise de abstinência do Coitado do Tony – viciado em álcool, heroína e xarope pra tosse –, que realmente me impressionou) e pensando em alguns personagens, tão malucos quanto interessantes.

Liguei o rádio baixinho na 'Guarani'. Terminei meu chá lentamente, peguei o livro, atravessei a cortina de fumaça que saía da casinha das crianças e fui me sentar numa mesa de mármore atrás do fogão a lenha, perto do canteiro de ervas do meu pai. Ali eu podia ler à vontade, em voz alta, sem amolar ninguém. 'Graça infinita' não é fácil de ler, dá trabalho, e lê-lo em voz alta me ajuda a entrar na história, a sentir melhor as cenas, os personagens. Li seis páginas e parei. Fui ao canteiro de ervas e peguei um raminho de manjericão. Devo ter ficado uns quinze minutos cheirando folhinhas amassadas de manjericão e observando o céu mudar de cor para acolher o sol que se punha.

Tempo livre. Que benção! Os filhos brincando sem brigar, a esposa jogando buraco sem me chamar, meu livro na mesa, esperando, sem pressa, e eu sozinho, sem nada pra fazer.

Muita gente confunde não ter nada pra fazer com tédio. Eu não. Valorizo muito não ter nada pra fazer. Tempo à disposição, sem obrigação. O que não significa vegetar ou simplesmente dormir. Faço coisas quando não tenho nada pra fazer, se quero. Cheirar manjericão assistindo ao pôr do sol sem me preocupar com o minuto seguinte, por exemplo. Folhear um livro sem lê-lo, ou ler uma pequena passagem, ou uma página inteira, duas, três, ou um capítulo inteiro. Respirar profundamente, lentamente, depois fechar os olhos e sentir a brisa da tarde passar por mim como uma carícia, uma benção de Deus. Tomar chá ou café, degustando cada gole. Comer goiaba, pitanga ou jabuticaba. Andar descalço no terreiro e sentir a terra úmida nos pés, sem pensar em nada, ou pensando em como são bonitas as flores do pé de maracujá da entrada, ou as folhagens multicoloridas que circundam a casa, enchendo-a de vida, de paz. Viajar sem sair do lugar, flutuando nas nuvens, na direção do poente... Enfim, sentir-me parte da natureza: passageiro, pequeno, entregue ao tempo, sem grandes ambições, sem pressa...: eu, simplesmente eu.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 18/02/2015
Código do texto: T5141430
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