Os dois amigos

José e António foram colegas de trabalho num armazém de ferro (venda de todo tipo de perfis de ferro e chapas), ali para os lados de Alcântara. Lá se tornaram amigos, partilhando alegrias e tristezas na criação das suas proles. Hoje, já reformados há muito, vão se encontrando no jardim de Santo Amaro de onde espreitam o Tejo e as entradas e saídas dos navios.

Já sem companheiros para jogar à bisca, vão se entretendo vendo os outros jogar e relembrar tempos idos.

- Então José, como vão os teus filhos?

- Governando a vidinha deles. Um está lá para o Canadá, o Gustavo, e o João Carlos está no Qatar, penso que ambos estão bem. E os teus?

- Lá vão indo com a graça de Deus, a minha Gertrudes é que anda adoentada, mas vai andando. Tu lembras-te das nossas férias no parque de campismo na Caparica?

- Se me lembro? Claro que me lembro, nós e as nossas patroas, a criançada a brincar, os banhos, as nossas cervejas ao fim da tarde, as nossas sardinhadas quando não era entrecosto grelhado. Se há coisas que me deixaram saudades é o entrecosto que já não como há bastante tempo por causa do colesterol. Agora a casa vazia, sem os pequenos, sem a minha mulher, Deus a tenha lá no paraíso!...

A conversa entre os dois amigos prosseguiu, lamentando-se o José que o que mais lhe custava era a noite sem ninguém em casa, desde que lhe falecera a mulher. Recordava-se de ter lido em algum lado que para ser velho era preciso ter coragem. Como lhe fazia agora sentido essas palavras.

- António! Quero pedir-te um favor, se vires que não apareço por aqui depois de dois a três dias, vai com os bombeiros a minha casa e arromba a porta. Não quero ficar a cheirar mal acaso tenha morrido.

Uma grande tristeza ensombrou o rosto de António. Já não era a primeira vez que o seu amigo falava nisso. Se antes encolhia os ombros e o confortava de que ninguém sabe o destino do amanhã, também era certo que o facto de ele viver só o preocupava.

O tempo foi passando, e os encontros continuaram. Naquela manhã José não aparecera, devia ter ido ao médico conforme tinha dito. No outro dia António resolveu ir saber do amigo, quem sabe estivesse a precisar de alguma coisa. Encontrou tudo fechado. Perguntou aos vizinhos por ele, mas ninguém o tinha visto. Lembrou-se então do pedido que antes repetidamente lhe tinha feito, e prevendo o pior, foi chamar os bombeiros para arrombarem a porta. Do quartel disseram que tinha que levar dois policias para tomarem conta da ocorrência. Correndo para cá e para lá, lá conseguiu os meios para entrar em casa. Subiram e na altura que um dos bombeiros se preparava para deitar a porta dentro, um dos polícias disse que fazia parte do regulamento bater à porta. José insurgiu-se com tanta burocracia.

- Farto de bater estou eu! Ou os senhores julgam que isto é uma brincadeira? Deixem-se de histórias porque o meu amigo já está morto decerto.

O polícia não lhe ligou e deu duas fortes pancadas na porta.

- Quem é? – Pergunta alguém de dentro.

O pobre António estremeceu, alguém se tinha antecipado. Provavelmente o cangalheiro, mas quem lhe teria dado a chave?

Um homem novo recebeu-os, surpreendido com tal aparato. Atrás dele apareceu o seu amigo José com um grande sorriso.

- Tu desculpa António pela preocupação que te causei, mas o meu filho apareceu-me ontem e quer me levar para o Canadá. Hoje fomos tratar da papelada e assim podes ficar descansado.

As autoridades foram esclarecidas quanto ao motivo do alerta de António e ainda que tivessem de prestar esclarecimentos no quartel e na esquadra, foi com grande alívio que os dois amigos se abraçaram.

Uma semana depois António acompanhou o seu amigo ao aeroporto.

- Adeus meu amigo, vou triste por ir para um país que não conheço, triste por nunca mais termos os nossos encontros, mas ao mesmo tempo feliz por ir para casa do meu filho e ter a certeza que não precisarás de arrombar a porta para me dares um enterro decente.

Só quando o avião sumiu da sua vista é que António desviou o olhar enquanto enxugava as lágrimas.

Lorde
Enviado por Lorde em 16/02/2015
Reeditado em 16/02/2015
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