PRAZERES DA CARNE

Alecrim...

Ainda era noite quando ela chegou com as panelas e as fôrmas. Concentrou-se e vestiu o avental e a touca para atuar à beira do fogão sem receitas ou medidas. Um ritual preciso. Os olhos inquietos percorreram os armários. As iguarias doces e salgadas eram frutos da intuição das tantas décadas avolumadas na fina massa das percepções infantis. Um desejo, uma lágrima perdida, uma descoberta, uma travessura... Os sabores ao arbítrio das emoções. Aprendeu a brincar com os alimentos quando ajudava a mãe, parteira e cozinheira, na lida doméstica.

Pimental do reino...

Cozinhar era uma arte que não precisava de letras ou números. Um ofício de muitas mulheres, mas um dom de poucas “Marias”. Ela, batizada com o nome de Nossa Senhora, nutriz dos filhos com que foi abençoada e conservada com uma esfomeada alegria, acostumou-se a conduzir o cortejo aos banquetes do corpo na ressurreição dos prazeres das carnes temperadas do tempo. Sem metáfora ou qualquer outra figura de linguagem, Maria reescrevia com capricho suas vivências e compreendia o mundo com cheiros e sabores. Aventurava-se no mítico universo da culinária para se recriar em fantasias extravagantes com os gostos afrodisíacos dos desejos mais íntimos. A apreensão dos sabores da alma é uma receita ímpar.

Açafrão...

O espírito de um tempero, a essência da vida degustada nas porções de sonhos, gozos e gestações. A cópula das necessidades e dos anseios é a possibilidade de recriar em si a realidade do corpo proibido, verbalizar as fomes e cozer, nas costuras da vida, as carnes malpassadas de alguns interditos. Já era noite quando ela se foi com as panelas e as fôrmas. Deixou a mesa posta repleta de confissões escondidas entre os pratos apolíneos e de ilusões derramadas nas delícias corpóreas dos risos dionisíacos. Saciada, ela saiu com a receita dos dias vencidos nos sensuais desejos e a inspiração para engendrar a púbere pele de gostos.

Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 04/06/2007
Reeditado em 04/06/2007
Código do texto: T513807