Ramon e o mendigo

No enorme passeio de pedras encardidas, em frente à lanchonete onde Ramon e seus dois filhos comiam, sacos pretos cheios de lixo eram meticulosamente vasculhados por um jovem mendigo. Ele os abria com cuidado, seus dedos de unhas compridas e sujas desfazendo os nós sem pressa, o olhar perdido num ponto qualquer do passeio, indiferente às pessoas que passavam por ele sem notá-lo, às famílias, amigos e namorados sentados às mesas comendo sem vê-lo, como se ele fosse uma árvore, um banco ou um monte de merda.

Mas Ramon observava o mendigo. Via como ele procurava, quase enfiando a cabeça dentro do saco, farejando, tateando, e quando encontrava alguma coisa, como examinava o achado – geralmente um pedaço de sanduíche –, cheirava-o, levantava uma fatia do pão, olhava de perto o bife ou uma folha de alface suja de molho, e depois embrulhava tudo num papel amassado, também tirado do lixo, certamente para comer depois, longe dali.

Com a vista já cansada pelas luzes ofuscantes da lanchonete, Ramon tentava contornar as linhas opacas do corpo daquele jovem e destacá-lo do fundo escuro da noite, do poste enfumaçado, do monte de lixo, do passeio encardido. E o contorno se traçava, como um desenho feito por mãos invisíveis, os detalhes surgindo aos poucos: nariz aquilino, cabelos emplastrados de sujeira, braços longos e magros, roupa rasgada e manchada de tudo quanto é imundície...

“Mas quem é ele?”, Ramon se perguntava.

De repente seus olhares se cruzaram e Ramon viu um brilho nos olhos do mendigo. Foi muito rápido, mas ele viu. O brilho de uma tristeza viva, humana, cheia de passado e presente.

O jovem mendigo estava ali, presente: – Mateus, Rodrigo, Lucas, Geraldo, Ricardo, Jurandir ou qualquer outro nome. “Presente, professor”. Aquele olhar dizia isso. E dizia mais: “Ainda tenho sonhos”.

Sonhos, projetos. Ramon via isso naquele jovem, no seu rosto cansado, no seu olhar de ovelha desgarrada, no jeito delicado com que ele desamassava o papel e embrulhava o pedaço de sanduíche, nas mãos habilidosas que procuravam, tateavam. Havia vida ali. Orgulho. Apesar da indiferença, do desprezo de todos, de tudo. Seu olhar dizia: “Não sou o que vocês pensam. Não vivo assim porque quero. Vocês não me conhecem, não sabem nada da minha vida, NADA!”.

Ramon notava naqueles gestos silenciosos, cheios de vontade, resquícios de um prazer em demonstrar habilidades e questionar o despreparo dos outros. Aquele jovem também sabia se destacar.

Ao redor de Ramon as pessoas comiam. Uma jovem morena, muito bonita, sentou-se bem perto da sua mesa, abriu um sanduíche e, com avidez, abocanhou um enorme pedaço. Ramon conversava com os filhos, mas não tirava os olhos da moça, que comia como se nada mais existisse além daquele pão recheado com carne, queijo e molhos especiais.

“Há algo de obsceno no ato de comer...”, pensava Ramon.

E ele reparava as outras pessoas mastigando, engolindo e arrotando discretamente o gás dos refrigerantes. “Que horror, meu Deus”, disse para si, balançando a cabeça como se negasse tudo ao redor, desolado, triste. “Será que é isso que somos?... Sacos de tripas ambulantes se enchendo, se empanturrando... Carcaças imundas?... Ninguém... Ninguém aqui é melhor que aquele mendigo”, pensou. E virou-se para vê-lo junto ao lixo, mas ele já tinha ido embora.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 14/02/2015
Código do texto: T5137247
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