O Conto no Vigário

O bom franciscano Frei Nicolau permitia em sua paróquia a presença de animais, sobretudo os gatos que por ali se multiplicavam.

O sacristão Bento, no entanto, estava longe de ser admirador dos bichanos e buscava uma forma de eliminá-los tão logo fosse possível.

Quer por castigo ou por ironia, era justamente ele o encarregado de alimentar aquelas criaturas.

Sem apetite pra ouvir tanto miado em seu ouvido, urgia a necessidade de encontrar alguma solução. E dentro do ambiente católico essa passou a ser sua maior missão.

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O CONTO NO VIGÁRIO

de: Jomar Magalhães

“Gato escaldado sente medo de água fria!” Foi esse o dito popular que o sacristão Bento, da pacata igrejinha de São Francisco de Assis, resolveu seguir à risca.

Há algum tempo ele não mais sabia o que era ter sossego dentro daquela modesta paróquia. Tudo porque frei Nicolau, em seu bom coração, tinha um cuidado franciscano com os animais. Em especial... os gatos! Cuidado esse que era, ao mesmo tempo, motivo de verdadeiro infortúnio para o pobre sacristão. Não só pela antipatia que nutria por eles, como também pela alergia que sofria com os pelos dos pequenos felinos. Não bastasse isso, era ele, justamente ele, o encarregado de alimentar aquelas repugnantes pragas, como costumava chamá-los.

- Como bom cristão que busca ser, você não deveria nutrir tanta intolerância com os pobres bichanos, seu Bento – observava frei Nicolau.

- Implicância têm eles comigo, frei Nicolau, que não satisfeitos com as amofinações que me causam durante todo o dia, ainda ficam de algazarra e saliência em frente a minha janela que por nada desse mundo eu pego no sono.

De fato seu Bento vivia atordoado com os tais gatos. Por mais de uma vez pensou seriamente em abandonar a fé e a igreja. Protestaria assim não somente contra o contra o pároco, mas também contra Deus que eram os responsáveis pela vida que levava. Sempre que ia assim organizando as idéias, era logo despertado por um ou outro miado. “Não! Antes eles do que eu!” Estava decidido a dar um basta naquela situação.

Homem de bom coração que era, não teria a coragem de sacrificar um daqueles animais, por mais que os detestasse. Contudo, alguma coisa tinha que ser feita. Foi aí que resolveu pôr o dito popular em prática.

Quando os vinte e tantos gatos disputavam a melhor posição ao redor de uma grande tigela de sardinhas fritas, veio ele sorrateiramente por trás e assaltou-lhes o apetite com um balde de água fria, distribuída religiosamente entre os pobres famintos. Foram tantos vultos passando sobre sua cabeça que, além das sete vidas, cabia o questionamento se também voavam.

No segundo dia, a façanha se repetiu; no terceiro, nem precisou tanto do banho. Bastou apenas um leve ruído metálico do balde para que os pequenos felinos desaparecessem como raios. Seu Bento, caído no chão, se desconcertava em gargalhadas, no mesmo instante em que frei Nicolau, de súbito, se deparou com aquela cena.

Não houve argumento suficiente para convencer o religioso de que sua intenção era a de lavar a igreja àquela hora e com apenas um balde de água. O frade o repreendeu com palavras que lançaram sua alma na porta do purgatório. Para não se dar por vencido, seu Bento considerou que não seria nada agradável ter que enxugar o chão da igreja às pressas e que, mais cedo ou mais tarde, frei Nicolau descobriria mesmo.

Não tinha importância. Continuaria arquitetando uma ideia melhor e mais convincente. Um dia foi ter com o frei:

- Frei Nicolau, como o senhor mesmo apregoa, todo franciscano, por força da própria doutrina, deve amar os animais, não é verdade? Assim sendo, eu vim lhe fazer um singelo pedido, já tendo de antemão a certeza de sua aprovação, como bom franciscano que é.

O pároco que já havia percebido toda uma desenvoltura agnóstica no discurso do sacristão, nem se surpreendeu quando este lhe disse que seu desejo era o de criar ali também alguns cãezinhos. A princípio pensou em recusar tão somente por saber que aquele sacristão gostava tanto de cão como de gato. Contudo cedeu porque, em conversa enfadonha, um amém vale mais que um sermão.

Pois bem; no dia seguinte, chegada a hora da refeição, seu Bento apresentou para o banquete cinco bestas-feras exageradamente adultas que traziam na fuça a mais perfeita tradução da fome. Pareciam capazes de devorar, em uma única abocanhada, a refeição, as tigelas, os vinte e tantos gatos a sobremesa e mais uma imagem de Santa Rita Durão que ficava próxima.

Fato é que, servido o cardápio, os gatos avançaram nas vasilhas como de costume e nem mesmo o mais franzino deles se intimidou com a presença daquelas fortalezas. Enquanto devoravam a comida, a matilha do sacristão circulava por fora, na inútil tentativa de alcançar parte da iguaria. Tanto que o primeiro a furar o cerco levou uma arranhada nas ventas que perdeu o apetite por três dias.

Decepcionado com tudo a que assistia, seu Bento foi capaz de assimilar em poucos minutos toda a teoria de Darwin.

Ainda assim insistiu por mais alguns dias sem que o quadro mudasse. Por isso, quando frei Nicolau chamou a sua atenção dizendo que um dos cachorros havia sujado o interior da igreja e que nunca tivera problemas dessa natureza com os gatos, seu Bento não esboçou a menor reação e até admitiu a inconveniência de se criar cães ali. “Malditos vira-latas” – pensava consigo. “Mas isso não haveria de ser nada! Ele haveria de pagar! Ele e, principalmente, os gatos dele!” - concluiu.

Um dia seu Bento acordou eufórico. Teve na calada da noite uma ideia que o fez saltar da cama antes mesmo da hora costumeira. Mal podia esperar que chegasse o momento de saciar a clientela.

Durante o dia que se arrastava preguiçosamente, ele contava nos dedos os minutos que faltavam para começar a pôr em prática seu mais novo plano. Como a ansiedade aumentava e o relógio não contribuía, resolveu antecipar um pouco o horário de reunir a clientela.

Por fim, chegado o precioso momento em que os felinos disputavam a luta pela sobrevivência, seu Bento foi aos fundos da igreja, pegou uma abençoada vassoura, tomou fôlego e vibrando as cordas vocais gritou como jamais imaginara:

- Jesus Cristo!!!

E logo após proferir o Santo Nome, tome vassourada em tudo o que fosse gato que via pela frente. Para os que ficavam encurralados, repetia a doutrina: gritava por Jesus Cristo e lá ia vassoura.

No terceiro dia deu-se ao luxo de comprar vassoura nova por perceber que aquela já estava gasta de tanto varrer o ar. Assim fez nos demais dias, sendo que no sétimo descansou. Descansou por já nem ser mais preciso usar a vassoura. Bastava invocar o divino nome que em questão de segundos não havia mais nem gato, nem rangido, nem miado. Contudo, seguiu ainda com o ritual por mais dois meio-dias. Daí, foi ter novamente com o responsável pela igreja:

- Frei Nicolau, eu gostaria de falar com o senhor novamente sobre o assunto dos gatos...

- Ora...!

- É só um minutinho, por favor! Sabe, é verdade que a Igreja evoluiu nos últimos anos... mas, por outro lado, algumas tradições caminham com ela e nunca se extinguem, por mais absurdas que possam parecer...

- Conclua logo, seu Bento, porque eu ainda tenho muito o que...

- O que eu gostaria de dizer é que minha implicância com os gatos não é uma coisa sem fundamento...! A verdade é que esses animais... Bem, frei Nicolau, o que eu quero dizer é que esses animais não são de Deus. É isso! Eles têm parte com o Coisa Ruim...

O pároco fez um gesto tão impaciente que nem foi concluído para que melhor pudesse ser decifrado:

- Francamente! Então o senhor me interrompe as atividades no meio da manhã pra me dizer uma asnei...

- Então duvida!? Pois eu posso lhe provar que se o senhor gritar o nome de Jesus Cristo perto deles, todos desaparecerão em desembestada correria.

- Era mesmo o que me faltava! E como se não bastasse ainda invoca o Santo Nome em vão!!!

Importa registrar que, de uma ou de outra forma, frei Nicolau acabou cedendo, após alguns preciosos minutos de importuna discussão:

- Pois então, seu Bento, me chame na hora de alimentá-los. Mas ouça bem o que lhe digo! Que seja esta a última vez! Fui claro!?

Chegada a bendita hora, lá estavam o sacristão, o pároco, as várias tigelas e mais os tantos e tantos gatos que a essa altura já se contava pra mais de quarenta.

Num dado momento, seu Bento pediu que frei Nicolau pronunciasse o nome do filho de Deus. Naturalmente o religioso recusou-se a tal ridículo dizendo que o sacristão, se quisesse, que tratasse de se esgoelar.

Assim, o bondoso sacristão abasteceu como nunca os pulmões de ar e gritou como se ali estivesse alguém que desejasse abalar as estruturas das muralhas de Jericó:

- Jesus Cristo!!!

Pronto! No espaço de três a quatro segundos já não se via mais gato algum num raio de trezentos e dezessete metros. Frei Nicolau, atônito, sentiu as pernas fraquearem, o ar fugir e o sol escurecer. Buscou apoiar-se em uma pilastra antes de desabar no degrau que dá acesso à sacristia.

Somente quatro horas mais tarde deu-se por si, com uma xícara de café amargo e meia dúzia de fiéis ladainhando todo o rosário ao seu redor.

Dois dias depois, ainda em estado de choque, o pobre religioso partia para outra paróquia, já que ali os gatos não paravam de rondar a igreja.

Somente duas semanas após sua partida, soube-se notícias dele:

Vivia trancafiado em seu novo templo, munido de vários baldes d’água pelos cantos, cães ferozes pelo quintal e vira e mexe gritava o nome de Jesus Cristo a qualquer que fosse a hora do dia ou da noite. Havia, porém, uma imprescindível arma que ele desconhecia: a vassoura!

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