ESTUDANTES
Moravam em uma chácara, dessas surpreendidas pela zona urbana. Cães e gansos completavam o ambiente. Uma casa grande, com quatro quartos. Construção antiga, pé direito alto, janelas de madeira com tranca, caiação amarelada pelo tempo. Piso de madeira com um pequeno porão. Uma varanda com redes e afrescos. No fundo um córrego já poluido, aonde, segundo alguns, habitava o mostilho folha.
A maioria cursava arquitetura na Brás Cubas, mas tinha também uma aluna de psicologia da UMC (que depois foi fazer cinema). Todos amantes da pinga de figo do Alambique do Paulinho, dos licores de Guararema e da cachoeira de Luis Carlos. Sem esquecer dos cogumelos do Botujurú e do alto teor de fumaça, no ar que se respirava por lá.
República mista. Não era novidade, mas com estas dimensões e qualidades era a única da região. Criativos, sempre bolando festas e outros convescotes. Vida de estudante universitário na década de setenta. De lamber os beiços. Ainda rolava a noite do Brasil, mas já com aquela brisa da madrugada, que anuncia o alvorecer.
Políticamente falando, o ano de 77 viu as primeiras passeatas estudantís e populares. Alguns grupos iniciavam as lutas pela anistia ampla, geral e irrestrita. Outros radicalizavam, enquanto alguns tentavam se infiltrar nas estruturas existentes.
Já, nossos amigos, estes pouco ou nada se preocupavam com a política. Trata-se da geração educada pela estrutura ditatorial desde seus primeiros anos escolares. Muito OSPB e Moral e Cívica, além do “feriado” em 31 de março, das visitas à EXPOEX (Exposição do Exército) e da fila da torradinha com Maionese na UD (Feira de Utilidades Domésticas). Dentre as opções existentes, a radicalização política ou o desbunde, o autoconhecimento, escolheram a última e foram “curtir”. Tinham amigos na Libelu (Liberdade e Luta - sigla do movimento estudantil) e tudo o mais, mas a noção de liberdade dos politizados não condizia com as necessidades deles.
Muitas eram as dúvidas, no entanto. Entrar ou não entrar na aula da Neusa ou do Kneese; viajar na praia ou na montanha, leia-se Trindade ou Mauá; passar na lanchonete ou na Geodésia; Alambique do Paulinho ou Guararema; ser bi ou não, comprar do Pelego ou do Fissura? Podia ser do Prego, também. Fazer sandália de couro, colares ou silk screen?
Ao mesmo tempo que a sociedade se mobilizava pelas liberdades democráticas a censura ia abrandando seus métodos e as informações começavam a chegar. Havia mais coisas entre o céu e a terra do que um governo militar. Assar batata na fogueira ou assistir Malu Mulher? Havia um mundo a ser descoberto, na alegria, com alegria e pela alegria, apesar dos artigos 12 e 16 da Lei 6368. Nada foi mais fácil do que se render ao glitter e às Frenéticas, “com a cabeça feita para não dar bandeira, a cabeça feita não marca bobeira” da canção de “O Peso”. Gil mandava: “quanto mais purpurina, melhor”. Duendes, elfos e gnomos ajudavam quando e aonde podiam. Todos “Odara”. Peter Tosh tocou no Anhembi. Tudo era como jantar em São Sebastião ou no Rio de Janeiro. Perder-se no Circo Voador, no colorido do Cachadaço ou no Vale do Pavão. Construíram casas de vidro, imaginárias, nas corredeiras do Rio Preto, enquanto outros tentavam emplacar seus carros em Liberdade (pequena cidade mineira, no pé da Mantiqueira), para depois circularem em São Paulo. Brincaram nos espelhos do Bar Persona, no Bixiga, e compraram os livros diretamente do Plínio Marcos, que vendia de mesa em mesa e gentilmente autografava.
Foram anos que tiveram um preço. O preço da loucura, para uns, e da própria vida para outros. Nada foi mais dolorido do que ir ao enterro de alguns amigos. Amadureceram pela dor, levando os anos loucos para sempre no coração, para tentarem ser melhores e criarem os filhos, neste nosso Brasil.