Medeia sai da sala
A melhor máscara é a do rosto nu. Paradoxal e loucamente, esconder-se é um ótimo atalho para se revelar. O mundo virtualmente real, que causa ilusão de segurança por causa do escudo da tecnologia, permite qualquer mentira. E são nessas mentiras que a verdade se esconde.
Medeia ignorava isso tudo. Apenas queria fugir do que era, correndo para dentro de si mesma. Fechava em seu universo e abria o notebook. Sentia-se sem grilhões. Era quem quisesse ser: ruiva, negra, coroa, jovem, modelo, tímida, dominadora, puritana, ingênua, revoltada, conformada, carente, suicida, amante da vida, sonhadora...
Mas Medeia se irritou com as máscaras que imaginava usar. Saiu da sala de bate-papo. Tentativa insana de sentir prazer com os dedos sobre o teclado duro e letras frias. Quis lançar longe o computador. Lembrou-se que pagara caro e parou. Riu por estar tão presa ao mundo de consumo, de dinheiro, do dia a dia, do cotidiano de contas para pagar. Chorou (mas apenas dentro de si, pois chorar com todas as lágrimas que sentia vontade de fazer jorrar seria romper o pequeno círculo das convenções) por estar presa em um mundo tão organizadinho em seu caos, tão limpinho em suas sujeiras, tão coerentezinho em suas contradições.
Fechou o notebook. Foi à sala. O marido zapeava os canais. O filho adolescente, largado no outro sofá, distante com seu fone, ria de alguma besteira do Facebook. O mais novo, com os olhos petrificados, corria rápido os dedos sobre a tela do tablet em algum jogo.
Todos ali numa sala vazia, sem ninguém. Também saiu dessa sala.
– Alguém quer jantar?
Ninguém na sala.
– Tem comida pronta. É só esquentar.
– Meu bem, comida requentada de novo! – reclamou, mecanicamente, aquele corpo gordo, sem tirar os olhos da TV, a mão direita do controle e a esquerda, da barriga.
– Tá bom. O que vocês querem comer?
– Sei lá. Qualquer comida, desde que seja feita na hora.
O corpo gordo resolveu largar o controle no sofá. Saiu bocejando, coçando a barriga em direção ao banheiro.
– E vocês, vão querer jantar, meninos?
Nenhuma resposta. Ninguém na sala.
Medeia foi à cozinha. Abriu a geladeira. Tirou do congelador o tapower com feijão. Levou-o ao micro-ondas. Olhou os filhos, que se divertiam em seus aparelhos. Sentiu alguma admiração, sem saber do quê. Ligou o micro-ondas. Pegou o tapower com o arroz do almoço. Cortou em pedacinhos a carne congelada do fim de semana.
Ouviu a descarga. Depois, o som do chuveiro. Minutos depois, enquanto olhava o arroz no fogo, sentiu o abraço do corpo recuperado do marido.
– Arroz carreteiro! Delícia! Nada como comidinha da hora!
Medeia sorriu enquanto pensava “isso tudo é requentado, idiota”.
O corpo do marido retornou ao controle e ao sofá. Voltou a zapear.
Medeia quase disse: “Marido e filhos para que servem?” Reprimiu o pensamento. Envergonhou-se. Lembrou-se das salas de bate-papo, das fugas para o mundo que imaginava ser virtual. Voltaria a conversar em alguma sala de fetiche de morte ou algo assim.
Olhou o marido e os filhos e quis esganá-los. Poderia, sei lá, colocar algum veneno na comida. Novamente, sentiu vergonha de si mesma. Depois riu. “Que bobagem!”, disse, baixinho. “Não seria boa ideia”, pensou, de relance. Não saberia como e onde esconder três corpos. “Que bobagem”, voltou a dizer.
– O que foi, meu bem?
– Disse que a janta está quase pronta.
– Você vale ouro, sabia?
Medeia não sabia que valia ouro. Só sabia que jamais esganaria os filhos, porque os amava. Um amor, cuja origem desconhecia: ou era fruto de convenções, como a que a impediu de partir o computador em pedaços, ou algo natural, ou, ainda, transcendental, inexplicável pela razão. Só sabia que jamais esganaria os filhos. Olhou para os dois e sorriu. Quis abraçá-los. Mas as mãos deles estavam ocupadas no celular e no tablet.
Quanto ao marido, aquele corpo que zapeia todas as noites no mesmo sofá, que não gosta de comida requentada, mas não deixa nada no prato... quanto ao marido, tinha dúvidas. Talvez um dia o esgane. Mas, estranhamente, também quis abraçá-lo. “Carência”, pensou. Entrar em uma sala de bate-papos ajudaria.
– Venham jantar. Meninos, lavem as mãos.
Minutos depois, um a um (e nessa ordem), tablet, celular e controle foram deixados no sofá.
– Arroz carreteiro da hora. Querida, você é cozinheira de mão cheia.
– “É requentado” – pensou Medeia. E sorriu.
– Sorriso lindo, meu bem!
– “Idiota” – pensou.
Terminado o jantar, controle, celular e tablets voltaram a suas respectivas mãos. Medeia já não tinha ninguém em casa. Todos na sala novamente vazia.
Ela também foi para o seu mundo. Ligou o notebook. “Ainda bem que não despedacei você”, cochichou. Entrou em uma sala de bate-papo qualquer. Pensou um pouco e escolheu um nome: “Medeia”. E digitou, sem que ninguém entendesse: “Nada mais falso do que ser quem você é”.