VINTE E QUATRO HORAS...

Cansado, cheguei finalmente em casa. O dia fora duro, mas não mais do que a incompetência de desligar por completo e ficar em estado puramente mecânico, sem pensar... Ao abrir a porta, que gemia em uma canção já conhecida, minha esposa recebeu-me com um sorriso de olhos e lábios, enquanto minhas filhas – cada qual a seu modo – abraçavam-me bem forte... Após o ritual de sempre (banho, café, mais abraços...), perguntei a minha mais velha como havia sido o dia... – Legal! – respondeu no ato. Baixei a cabeça, andei em volta de minha estante de livros, olhei para alguns e escolhi um livreto de ópera. Passei em frente à tagarelice da TV; por entre a brincadeira que se desenvolvia em outro nível de tempo; e recolhi-me a um pequeno espaço onde um tocador de CDs ficara calado, acredito, por um bom tempo... Pus o primeiro disco (Pelléas e Mélisande, de Claude Debussy), abri o tal livreto e acompanhei a tragédia...

O tempo foi passando, enquanto a história ia se confundindo com imagens que dançavam e sofriam sob as vozes de seus personagens... Como podem verdades tão perfeitas evoluírem para uma obra tão bem arquitetada e envolvente? Quase me vi com os amantes Pélleas e Mélisande acompanhando o mar que embalava um navio de velas altas, solitário e que sumia vagaroso na noite descortinada ao final do Primeiro Ato... Abri os olhos e percebi onde estava de fato meu corpo. Levantei da cadeira, cumpri mais rituais, conversei com minha esposa sobre nossas sortes, beijei a todos e recolhi-me... Naquela noite não sonhei, contudo acordei aos poucos com A Primavera, de Vivaldi (apesar do inverno...). Tratava-se do toque de meu celular/despertador. Levantei, fiz o que mandava a rotina e segui para o ponto de ônibus. Entrei, sentei-me no mesmo lugar de sempre, tirei meu Dostoievski da mochila e continuei de onde havia parado... “Não Ródia, como pode viver assim? Isso não é vida. Um rapaz que frequentou a academia... O que aconteceu? Anda pelas ruas como alma perturbada... O que há contigo, Raskólnikov? Vive a conversar com perdidos como Marmeládov em tavernas decadentes de São Petersburgo...”. Fui trazido de volta à realidade quando ouvi o som que denunciava que meu ponto havia chegado. Fechei o Crime e Castigo e segui minhas pernas até o local de trabalho.

Durante a atividade, o corpo ia para um lado e o pensamento teimava em seguir para outro, e, entre uma parada e um tempinho para o tradicional café, tirava do bolso um pequeno volume... “Morte, morte... O que fazer se fora ela que se apaixonara por mim? Essa louca, agora matou seu marido e, sobre ele, deixou o cadáver de sua filha... Para ficar comigo? Essa Medeia, o que ela pensa? Essa bruta só conseguiu atear fogo em um espírito...”. Uma voz externa então me chamou... Hora de voltar! Fechei minha Noite na Taverna e deixei adormecer o Gênio (Álvares de Azevedo) na lâmpada de onde o havia libertado...

O dia acabara, peguei o coletivo, sentei no mesmo banco... “Ródia, nem a carta de sua mãe é o bastante para te trazer de volta ao mundo? Eu sei, estou vendo sua preocupação! Sei também que parece simples resolver problemas alheios, mas levante a cabeça... Caminhe, sim, ande e pense, não olhe para mais ninguém, siga...”. Desci e segui... Porém não conseguia mais observar os rostos da volta, fiquei algemado a Raskólnikov e já não conseguia deixá-lo... Até que o som da porta se abrindo me trouxe mais uma vez para o corpo... Estava novamente em casa. Cumpri a rotina, voltei-me à estante e, agora – isso mesmo leitor, nesta mesma brecha de tempo em que te relato esta gravação do presente! –, decidi ouvir as cores da música de Weber enquanto me pego escrevendo esse relato tão kafkiano, retirado das entranhas de minha própria vida no período aproximado de vinte quatro horas.

Neste momento, escrevendo, já posso respirar, pois transformei a repetição em palavras que se repetirão diferente nos pensamentos de todos os que tiverem tempo para lerem um dia na epopeia de um simples homem no mundo. Sinto que assim renascerá uma legião de espíritos que partirão do porto que fiz em meu peito, pois sei que estarei envelhecendo e morrendo se não compartilhar e transformar o círculo em retas... Meu desejo, com isso, é confeccionar muitas e longas flechas para serem lanças para longe, pois quero evoluir o corpo, esquecer dos espíritos e viver como um comum que apenas nasce, perambula e morre. Tudo sem ao menos inquietar-se sobre o que ocorre dentro de seu próprio âmago, ser novamente apenas um artista da fome que vive alimentado por programas que programam a desnutrição do pensamento crítico da sociedade. Não quero fugir disso. Quero, como antes, acreditar em tudo, ser livre na escravidão da caverna “das oito”, onde o Brasil inteiro raciocina igualmente, sendo FELIZ.

Dilso Santos
Enviado por Dilso Santos em 10/02/2015
Código do texto: T5132092
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