PRECONCEITO
Sara resolveu passar a tarde passeando pelas ruas do centro da cidade com sua filha Gabriela de cinco anos. Caminharam por tudo. Estavam cansadas. Sol forte.
- Mamãe! Estou cansada de caminhar.
- Está certo, filha. Vamos procurar uma sorveteria que tem aqui perto.
Caminharam mais uma quadra; dobraram na primeira e depois na segunda esquina, chegaram num calçadão repleto de transeuntes. Escutaram um barulho de skate. Olharam para trás e se depararam com um rapaz sem pernas, que ficava andando pelo calçadão com seu skate.
- Moça! A senhora poderia... - o rapaz começou a falar.
Sara apurou o passo.
- Mamãe, a senhora está correndo muito! - reclamou a pequena.
- Estou apurando o passo, filhinha, para esse mendigo não nos alcançar.
O rapaz aumentou a velocidade do skate e insistiu.
- Por favor, moça! Será que poderia apenas me ouvir? - falou tristemente.
- Eu não disse, filha? Agora ele vai ficar nos incomodando!
- Mas mãe! Ele não pode fazer nada de mal para a gente. Coitadinho! Ele nem tem pernas! – exclamou.
- É verdade, filha. Desculpa. Estou agindo muito mal.
Sara virou-se. Procurou pelo rapaz no meio da multidão. Ele encontrava-se encostado na parede olhando tristemente para elas. Retornou até ele. Jogou-lhe algumas moedas. Virou de volta e continuou seu passeio a procura da sorveteria.
Logo elas escutaram novamente o barulho do skate. Ele veio com mais força e maior velocidade. Ultrapassou-as e virou-se de frente para elas.
- Tome suas moedas, moças. - disse com o braço estendido, devolvendo a doação e voltando para o lugar onde estava.
- E ainda por cima é mal-agradecido! Você pediu esmola e eu dei. Não precisava devolver só porque ficou bravo porque não parei na primeira vez em que me chamou! - exclamou Sara.
- Moça, não sou mendigo. Não estou pedindo esmolas. Se tivesse parado um pouquinho, teria conseguido escutar o que eu estava tentando lhe falar. Trabalho, sem remuneração, para uma ONG protetora de animais. Minha tarefa aqui é distribuir esses cartazes com fotos de cães e gatos que estão a espera de adoção. Cada mês, escolho uma ONG para ajudar. Sou de família de classe alta. Não preciso fazer isso. Faço porque gosto.
Sara ficou sem jeito e encantada com os seus grandes olhos verdes escuros, sua tez bronzeada e cabelos pretos esvoaçantes.
- Mãe, olha que lindo! Ele é do meu tamanho! - diz a pequena Gabriela.
- Olá. Eu sou Ernest Reveche. E você quem é? - disse o rapaz estendendo a mão à pequena.
- Sou Gabriela. Minha mãe e meus amiguinhos me chamam de Gabi. Então você pode também me chamar de Gabi, se quiser.
- Puxa! Que bom, Gabi! Então já somos amigos! E essa moça bonita ao seu lado, quem é?
- É minha mãe: Sara. Não fica triste com ela. Está cansada e suando por causa do calor e quando fica assim, ela fica muito nervosa. Acho que ela já nasceu nervosa.
Todos deram risadas. Sara pediu desculpas e pegou um cartaz oferecido por Ernest. Despediram-se; mãe e filha continuaram caminhando. Passaram em frente de uma banca de revista onde na maioria dos jornais e revistas, está estampada a foto do rapaz do skate. Sara leu as manchetes das capas e ficou muito envergonhada.
- Nossa! Então era verdade o que Ernest disse! Que vergonha! Que coisa feia! Falo tão mal sobre o preconceito e nada hora em que preciso mostrar para minha filha como se deve agir, faço tudo errado. - pensou Sara.
- Mamãe, falta muito para chegar à sorveteria? Estou muito cansada de caminhar. - resmungou a pequena Gabriela.
- Filha, não estou encontrando a sorveteria. Deve ter mudado de endereço! Que calor! - disse desolada, já se encostando à parede de uma loja, aproveitando a pequena sombra.
Escutaram o barulho do skate, dessa vez suave, maneiro, sem raiva. Olharam para trás e Ernest estava bem perto, distribuindo seus cartazes de cães e gatos. Seus olhos se encontraram. Sara achou Ernest parecido com um artista de televisão, mas não lembrou o nome. Ficou encantada com sua beleza e seu sorriso cativante. Ficaram por uns cinco segundos se olhando. Sara baixou o olhar. O barulho do skate aumentou. Era Ernest que se aproximara.
- Gabi, que tal se eu convidar você e sua mãe para tomarmos um sorvete?
- Oba! Vamos mamãe? Vamos?
- É aqui perto essa sorveteria?
- Sim. É logo ali ao lado daquele salão de beleza. Vamos?
Caminharam para a sorveteria que realmente estava bem próxima. Assim que Sara e Gabi se acomodaram nas cadeiras, surgiu uma mulher muito linda, para ajudar Ernest. Magra, alta, com longos cílios pretos, cabelos compridos passando da cintura, bem pretos e bem lisos. Ela saiu do salão de beleza “Carolina Reveche Personal Style” logo que viu Ernest entrando na sorveteria. Trás com ela: duas próteses, uma camisa masculina e uma bengala. Sara simpatizou com a moça, mas a olhou e já a identificou: - Só pode ser esposa ou noiva dele.
Ernest a apresentou: - Essa morena linda aqui é minha irmã, gente! Mana, quero que você conheça minhas novas amigas. Tivemos um contratempo no início, mas agora está tudo resolvido. - disse sorrindo.
Após as apresentações, Carolina agachou-se perto do irmão e ajudou-o a colocar as próteses. Ernest trocou a camisa suada pela camisa de linho branca que sua irmã trouxe. Pediram seus sorvetes. Carolina ficou apenas mais alguns minutos; pediu desculpas, pois tinha que voltar ao salão.
Enquanto esperavam seus sorvetes, Ernest levantou-se, pegou a bengala e dirigiu-se ao banheiro para lavar o rosto e as mãos. Sara percebeu que uma moça baixinha, da mesa ao fundo da sorveteria sorria muito para ela como se a conhece. A moça acenou chamando-a. Sara foi até lá.
- Não está me reconhecendo? - disse a baixinha sorridente e já dando três beijinhos em Sara, abraçando-a calorosamente.
- Desculpe, amiga. Não estou me recordando!
- Você era a garota mais bonita da escola. – disse a baixinha enquanto a abraçava e acaricia suas costas
Sara, não gostando desses chamegos, afastou-se, fechou a cara dizendo educadamente:
- Moça, deve ter me confundido com alguém. Com licença.
Ao se afastar em direção de sua mesa, Sara escutou quando a baixinha disse mordazmente e rindo:
- Ah! Você prefere o mutilado a mim? Ele deve ter tudo artificial naquelas partes do prazer.
Enquanto Gabi saboreava sua banana split, Ernest contou, em resumo, sua vida à Sara. Disse que seu pai era coronel do exército e ele queria seguir seus passos. Aos 18 anos alistou-se e uma bomba errada, colocada num lugar errado, num treinamento errado, numa hora errada, o mutilou da coxa para baixo. Já se passaram dez anos dessa tragédia e nesse meio tempo viajou pelo Brasil e pelo mundo dando palestras de superação. Explicou também que quando não está viajando, presta pequenos serviços às ONGs como o de entregar cartazes.
Sara escutava tudo com atenção e encantamento, mas sem esquecer aquela vergonha que passara. Não era assim. Ela não fazia juízo preconcebido com atitudes discriminatórias contra pessoas, lugares ou tradições diferentes. O preconceito costuma indicar desconhecimento pejorativo de alguém ao que lhe é diferente; leva à discriminação quando pessoas são classificadas pela sociedade como “diferentes”: pobres, negros, homossexuais, mulheres, idosos e doentes mentais. Sara não os considerava inferiores e sempre bateu na tecla que não devem ser excluídos dos privilégios desfrutados por aqueles que se consideram “melhores”.
Sara assustou-se quando Ernest, deficiente físico, aproximou-se. Ela sabe que uma pessoa com deficiência ou com risco agravado de saúde não pode, nem deve ser tratada de forma diferente dos restantes cidadãos, nem deve ser colocada em posição de desvantagem em comparação com as outras pessoas. Por isso sentiu tanta vergonha!
A conversa continuou. Sara contou-lhe que ficara viúva quando Gabi estava com seis meses de idade e a partir dali viveu apenas para cuidar de sua filha.
Os três saíram caminhando vagarosamente da sorveteria; relaxados e refrescados. Foram curtindo a sombra da calçada do lado esquerdo da rua. Caminharam bem devagar para esse encontro não acabar nunca. Suas mãos se tocaram nesse passeio. E assim continuaram por um quarteirão. Logo Ernest deu-lhe o braço que Sara prontamente aceitou e assim continuaram caminhando por mais um quarteirão. O passeio acabou. Tiveram que despedir-se. Ernest passou a mão no rosto de Sara acariciando-o, beijou-lhe a testa e a pequena Gabi exclamou, saltitante e feliz: “- Mamãe está namorando! Mamãe está namorando!”.
Simone Possas Fontana
(escritora gaúcha de Rio Grande-RS,
membro da Academia de Letras do Brasil/MS, ocupando a cadeira 18,
membro correspondente da Academia Riograndina de Letras,
autora dos romances MOSAICO e a MULHER QUE RI,
formada em Letras, contista da Revista Cultura do Mundo,
blog: simonepossasfontana.wordpress.com)
Minhas Anotações:
- Crônica escrita em fevereiro/2015.
- Publicada no blog: simonepossasfontana.wordpress.com.br