A MALA NA RUA
Naquele momento, se pudesse escolher entre ter ou não ter uma determinada irmã, eu optaria por não tê-la.
Suei raiva por todos os poros, feri ouvidos puros proferindo impropérios, e sôfrego também suei azedume salgado esperando o fim da via cruzes. Nem Jesus trocaria seu lenho pesado por aquela pesada mala cruel.
Minha irmã – não vou dizer o nome dela para não comprometer sua integridade física e moral – constantemente vem em casa passar uns dias, e sou quase sempre eu que a ajudo com o transporte da mala, tanto para busca-la e algum ponto ou leva-la de volta. Normalmente a mala é leve, com poucas coisas dentro, e são, normalmente, distâncias curtas que no bom bate papo acaba nem se percebendo o tempo correr.
Mas a mala, que ela tem, é uma maldita, com rodinhas quase microscópicas, que acaba constantemente tendo dificuldade até de rodar em piso completamente liso. Imagine então em piso irregular! O transporte, de um lado ao outro, necessariamente é praticado com a dita cuja, a meia altura, longe do piso.
Certa feita, depois de alguns dias aqui comigo, tragicamente o sistema, que ela iria utilizar, para transportar seu esqueleto e a famigerada mala, daqui de casa para a cidade dela, ficava um tanto distante, ou melhor, bem distante mesmo.
Confesso que fiquei arrepiado.
Chegou o momento da partida.
- Maninha, não se preocupe eu te ajudo; eu vou com você! Disse solícito a ela.
Maldição! Eu deveria ser um vidente em algumas situações, e assim teria simulado alguma dor que me impossibilitasse de me mover. Não, não sou, e não fiz isso! Acabei me estropiando.
Na véspera da viagem ela comprou uma panela de ferro, um saco de cinco quilos de arenito, colocou as roupas molhadas num saco plástico, e mais um processador de alimentos, acomodando tudo, não sei como, dentro da mala. Tivermos que eu, ela e alguns vizinhos subir em cima da famigerada mala para poder fechá-la com o zíper.
A mala simplesmente ficou estufada, pesando, nada mais nada menos, uns cento e cinquenta quilos.
De onde moro ao terminal de ônibus não tem cem metros, e no sofrimento carregamos a mala nos braços. Chegamos, eu e ela, tropicando na língua ouvindo a mala gritando:
- Estou estufada, não aguento mais! Vou vomitar! Quero peidar!
A mala não tem boca, mas mandei que ela se calasse.
O motorista do coletivo, em princípio, não queria deixar aquela coisa estranha entrar alegando excesso de peso.
Por fim adentramos com a ajuda dos passageiros.
O buzão, inclinado, patinando, acelerado, sofreu por algum tempo e nos deixou num ponto que seria o mais próximo onde minha mana ficaria. Eu calculo que foi cravado uns dois quilômetros.
Carregar nos braços a mala, nem pensar, e lá fomos nós tentando usar as malditas rodinhas.
Já anoitecia e a chuva se aprontava para cuspir enxurradas.
E lá fomos nós puxando a estufada e pesada mala por calçadas arregaçadas, e ruas disformes. Os gritos da mala ralando no chão, e o barulho que ela fazia no piso acabaram despertando a atenção de todos. Gatos miavam amedrontados, cachorros vadios uivavam encolerizados, mulheres nas janelas gritavam desaforos, putas medrosas fugiam para seus abrigos e a polícia acompanhava medrosamente de longe imaginando que fosse uma mala terrorista.
Puteado, cansado, exausto olhei para traz e vi que ia ficando um sulco no pobre asfalto; e que os ladrilhos, paralelepípedos pulavam soltos na calçada.
Diz a lenda que nenhuma desgraça vem desacompanhada.
E assim, para ajudar, a chuva chegou babando violentamente, e minha mana, ao invés de me emprestar a capa, simplesmente cobriu com ela a desgraçada mala.
Por fim, depois de quase quatro horas arrastando aquela coisa pesada, chegamos ao destino.
A mala estava aos pedaços.
Deserdei minha irmã brigando com ela gritando:
- Vá à merda você e esta famigerada mala! Não me apareça mais lá em casa!
Fui caminhando a passos largos, tomando a chuveirada do tempo, e isto foi o suficiente para me acalmar.
No dia seguinte, driblando a morte, com pneumonia galopante, antes de me internar no hospital, comprei uma mala nova, e um carrinho com rodas bem grandes, grandes mesmo, enviando por SEDEX com um bilhete que dizia:
- Maninha aí vai a mala e o carrinho para você voltar aqui em casa!