Proust é o escritor que mais me marcou, não que eu seja especialista em sua obra, ou mesmo que tenha lido todos os volumes de “Em busca do tempo perdido”. Devo ter lido três ou quatro completos, mas o de que falarei aqui é do primeiro – No Caminho de Swann – mais precisamente sobre a similaridade de sentimentos entre os dois personagens centrais desse volume. Gostei tanto que o reli, tempos depois.
         Da primeira vez que li, emocionou-me sobremaneira o modo pelo qual o narrador descreve as dores de amor, os ciúmes, os sofrimentos de Swann, quando este encontrava-se longe de Odette (a amada que, ciente do fascínio que exercia sobre o amante, absolutamente convicta da profundidade do amor que ele lhe dedicava, amor esse reiteradamente comprovado pela atitude de servil adoração e pelas vultosas quantias que ele lhe ofertava, desejosa de experimentar outros relacionamentos e já visivelmente entediada com sua presença constante, mesmo nos lugares onde ela não o autorizara a aparecer, aproveitava-se dessa “superioridade emocional” sobre o amante, infligindo-lhe toda sorte de punições morais, pregando-lhe as mais deslavadas mentiras e abusando ostensivamente desse ser que lhe dedicava tal sentimento, os ardis que empregava para vê-la como que “por acaso”, para não aborrecê-la e não correr o risco de, por castigo, ser impedido de encontrá-la; as nuances por que passava seu espírito, indo do mais profundo desespero à mais beatífica alegria, só pelo fato de saber-se (ou imaginar-se) o preferido da “deusa”, o esforço de sua inteligência, toda voltada a encontrar meios de descobrir, por outras pessoas, como era a vida de Odette, com quem Odette se relacionava, o que Odette dizia, a quem dizia e como dizia, enfim, essa minuciosa descrição da alma que sofre por um amor não correspondido.
         Ao ler pela segunda vez, então com mais vagar, e, principalmente, com a atenção despertada por uma frase do Prefácio, pude perceber e compreender o traço de união, ou melhor ainda, a profunda identificação entre os dois personagens principais desse primeiro volume, no tocante à dor de amor que ambos vivenciaram: a criança que costumava passar o feriado de Páscoa na cidadezinha de Combray, que sofria terrivelmente a ausência noturna da mãe adorada e o personagem Swann citado acima. 
         Ironicamente, o personagem Swann era o responsável pelos sofrimentos da criança, pois, sendo praticamente a única pessoa a visitar sua família nessa temporada que passavam em Combray, suas visitas costumavam estender-se até tarde, depois do jantar, o que, muitas vezes impossibilitava à mãe comparecer ao quarto do garoto para o beijo de boa noite, lançando-o nos mais cruéis sofrimentos de carência e desespero.
 
         Enquanto leio, compungida, aquelas páginas – que retratam tão fielmente a dor, a sensação de abandono, o profundo amor e a necessidade que aquele menino tinha de sua mãe, os momentos que antecedem a ida dela ao quarto, para o único beijo de boa noite – imagino-o, franzino, minúsculo, deitado numa enorme cama que mais realçava sua pequenez, num espaçoso quarto, como imagino deviam ser os daquelas casas de campo das cidadezinhas da França do século XIX.
         Posso vê-lo deitado, o corpinho encolhido numa posição fetal – pois quando sofremos muito, como quando temos frio ou medo, procuramos nos encolher, como se, diminuindo o espaço ocupado, diminuísse também a área sofrida, dando-nos assim a sensação de controlar melhor a dor ou o frio – sentindo o coraçãozinho bater descompassado – ora muito rápido, como para acelerar o tempo e trazer logo o momento tão esperado da chegada da mãe, ora parando bruscamente, ao menor ruído que ouvia, sobressaltado pela emoção de que já pudesse ser ela – a  respiração curta e ofegante, os lábios apertados e murchos como a flor sem água, esperando pela mãe, pelo seu beijo, pelo breve contato com aquela que era sua razão de viver, seu tudo, que contrastava com o nada que era tudo o mais em sua vida.
         Aquele lapso de tempo que lhe traria a felicidade suprema tinha para ele uma paradoxal significação: era o mais ditoso, pois traria a graça maior do dia – o beijo da mãe – mas era também o mais doloroso, pois “anunciava aquele que viria depois, em que ela me deixaria, voltando para baixo.” Aquele momento de extrema felicidade, aquele “único consolo” de um dia inteiro, vivido só para ele, à sua espera, aquele único beijo que o faria dormir e começar a espera pelo próximo, na noite seguinte, era tão fugaz e insuficiente, que ele desejava retardá-lo o mais possível, como quando comemos vagarosamente o último pedaço do doce preferido, com medo de que se acabe logo.
         Ele sabia, pelo hábito, que a chegada da mãe, o beijo de boa noite e sua saída do quarto, mergulhando-o novamente na dolorosa solidão, no inevitável abandono, não duraria mais do que alguns segundos; ele desejava, então, retardá-lo o mais possível para, assim, adiar também o sofrimento que se seguiria àquele momento de júbilo.
         E posso imaginá-lo vendo-a partir, querendo chamá-la, pedir-lhe mais um beijo, só mais um. Mas a voz pára-lhe na garganta, incapaz de expressar-se, tanto pela emoção como pelo medo da resposta, certamente negativa, pois aquilo irritaria seu pai, “que achava esses ritos absurdos, e ela, que tanto desejaria fazer-me perder a necessidade e o hábito daquilo, longe estava de deixar-me adquirir o novo costume de pedir-lhe, quando já se achava com o pé no limiar da porta um beijo a mais.”
         Esse beijo a mais, essa multiplicação da felicidade, que seria a concretização do sonho maior da criança, um curto momento de prazer duplicado, a emoção redobrada, a tão merecida recompensa de um dia inteiro de espera, esse momento único, imprescindível para o garoto era considerado, pelo pai, um simples hábito – um mau hábito – que logo deveria ser, se não extirpado, pelo menos desestimulado, por absurdo que era. O que para ele era essencial, como o ar e a água que garantem a vida, para os outros era apenas um costume incômodo, um defeito a ser corrigido.
         Ver a mãe aborrecida poderia estragar todo o prazer do beijo que ainda pairava sobre sua face; não, não poderia incomodá-la, sob pena de ver-se privado para sempre desse único prazer, soberana e inevitavelmente necessário. Então, calava-se e adormecia.
Primavera Azul
Enviado por Primavera Azul em 05/02/2015
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